O Facebook pode ter culpa no genocídio do século XXI?

Antes de entrar no tema, precisamos falar de genocídio. Lutei comigo mesma sobre fazer ou não essa introdução porque arrisca o texto ficar chato. Concluí que jamais conseguiria fazer algo tão chato quanto a galera que vê genocídio até em barraquinha de cachorro-quente.

A palavra genocídio já ganhou um significado de enfrentamento no debate político brasileiro. Quando isso acontece, cada grupo fechado pega uma palavra que já existe e já tem um significado formal e dá outro para ela. Aqui eu vou ficar com o original mesmo.

Genocídio é uma palavra que foi criada formalmente em 1944 e quer dizer a eliminação física de grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos. É um termo criado logo após o choque do mundo com a barbárie do holocausto para referir-se a ideias macabras também levadas a cabo em outros lugares.

Recentemente aconteceu com a minoria étnica e religiosa Rohingya, que vive em Mianmar, antiga Birmânia. Reli a frase e parece algo distante, exótico, uma ilha pequena e isolada. Mas é tudo gente e um país de 53 milhões de habitantes.

Nunca houve plena aceitação cidadã nem convivência pacífica com os Rohingya em Mianmar. Eles são de origem étnica diferente e muçulmanos vivendo num país gigante de maioria budista. Não têm direitos plenos de cidadania.

Os Rohingyas vivem nessa porção vermelha do mapa, o Estado de Raquine, que faz fronteira com Bangladesh. Não têm o direito de possuir nenhum tipo de propriedade ou terras, o que é uma violação à Declaração Internacional de Direitos Humanos. Também não podem deslocar-se ou casar sem permissão das autoridades de Myanmar, outra violação

Mas o ser humano é criativo e as coisas podem ficar ainda piores que isso. Em 2017 iniciou-se uma onda de violência partindo da polícia de Myanmar e de civis budistas que transformou-se em genocídio, um banho de sangue e tragédia humanitária.

Até 2018, diversos eventos de massacres, estupros e incêndios criminosos nas casas dos Rohingyas deixaram o saldo de 25 mil mortos e 725 mil pessoas expulsas de suas casas. Hoje, 2,5 milhões de Rohingyas deixaram Myanmar. A maioria cruzou a fronteira a pé até Bangladesh e acabou em campos de refugiados.

A chefe do governo da época era a ganhadora do Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi. Ela foi acusada de silenciar diante do genocídio e de não tomar as providências necessárias.

Mas há acusações ainda mais pesadas contra o Facebook, que admitiu oficialmente não ter feito tudo o que podia para conter o furor de limpeza étnica. Parece ingênuo acreditar que adultos seriam levados por redes sociais a cometer uma atrocidade deste tamanho. Será?

Convido você a refletir comigo. Estamos diante do primeiro caso que realmente vai discutir como vamos regular internacionalmente as redes sociais. Há uma resistência em obediência legal e fornecimento de documentos não só aqui no Brasil, no mundo todo. Só que agora a questão é onde realmente dói no Vale do Silício, no bolso.

Refugiados Rohingya nos Estados Unidos e Reino Unido processam o Facebook em US$ 150 bilhões (aproximadamente R$ 850 bilhões) por não impedir o incentivo ao genocídio e lucrar com esse sistema.

Quando ouvimos isso, imediatamente pensamos em propaganda de incentivo. Como o Facebook poderia contribuir com um genocídio? Algum maluco ia aparecer postando “vamos estuprar e matar esses Rohingyas?” e então uma multidão de adultos iria aderir? E a culpa é do Facebook, não desse pessoal?

Talvez o Facebook gostaria que você acreditasse nisso, mas as coisas infelizmente não são tão simples. As pessoas envolvidas em atos bárbaros não diziam acreditar ter a missão de destruir. Elas tinham a convicção de que eram atacadas e precisavam se defender.

Não tem postagem de incentivo do tipo “isso mesmo, vamos matar esse pessoal”. Nada disso. Estamos falando de cidadãos comuns. Eles acreditavam que os Rohingyas eram do tipo de muçulmano que comete atentado a bomba e que o próximo iria ser na esquina de casa.

O Conselho de Direitos Humanos da ONU fez uma investigação detalhada sobre o ambiente social do genocídio. A conclusão é de que o Facebook teve papel determinante para que a tensão já existente descambasse para a barbárie derivada do medo.

A digitalização de Myanmar foi a jato. A população teve pouco tempo para aprender a conviver no universo da Cidadania Digital. Em 2014, apenas 1% dos 53 milhões de cidadãos do país tinha acesso à internet. Em 2017, era o país do sul da ásia com mais acesso à internet.

Mas havia um problema que é comum em diversos países em desenvolvimento: o cidadão não tem como pagar por isso e as empresas providenciam. No Brasil, por exemplo, vários planos pré-pagos oferecem acesso grátis a Facebook, Instagram e Whatsapp. Ótimo, não é? Para quem?

Se o cidadão recebe um print com fake news, ele não tem créditos para checar. Ele vê a rede social de graça, mas não consegue navegar na internet sem pagar os créditos. Em Myanmar, na época do genocídio, acontecia algo muito semelhante. Para a quase totalidade da população, internet era sinônimo de Facebook.

O próprio Facebook admitiu, em 2018, que não fez tudo o que estava a seu alcance para estancar a onda de ódio contra a população Rohingya. Também existe uma ação no Tribunal Penal Internacionql do governo da Gâmbia contra o governo de Myanmar que requisita as comunicações entre militares daquele país e o Facebook.

Antes do início do massacre, as postagens alarmistas dizendo que os Rohingyas estocavam bombas e pretendiam explodir templos budistas específicos em Myanmar viralizaram. Boa parte delas vinha de contas falsas. A maioria continha uma expressão racista na linguagem local que poderia ser facilmente identificada por inteligência artificial. Nada foi feito.

O processo do governo da Gâmbia, que corre também em uma corte de Washington, identifica nominalmente oficiais do governo de Myanmar e as contas falsas que eles usaram no Facebook. São pedidas informações de comunicações entre a empresa e o governo, material que não foi entregue até hoje.

Existem atentados de muçulmanos radicais em diversos países. Nenhum deles teve aviso prévio e ninguém tem carimbo de terrorista na testa. E se, de repente, o grupo do Facebook do seu bairro começasse a ter certeza de que um grupo está estocando bombas e resolvesse agir? E se a polícia desse apoio a vocês? Já não parece tão disparatado assim.

Ocorre que a inteligência artificial do Facebook tinha como identificar a avalanche de perfis e páginas falsas promovendo essa movimentação. Também tinha como identificar o uso de expressões racistas típicas daqueles que defendem o extermínio físico das pessoas da etnia Rohingya. Nada disso foi feito.

Temos dois cenários entre os quais existe uma distância enorme. No primeiro, o Facebook não tem tanta gente envolvida em detecção do idioma local e não percebeu que existia a possibilidade da evolução da violência digital para a real.

No segundo cenário, o Facebook sabia que esses eram os planos das autoridades de Myanmar, manteve as contas sabendo o que iria acontecer e não ligou para as consequências.

São dois cenários profundamente diferentes, certo? Para o Facebook sim. Para quem morreu ou teve a família dilacerada nessa tragédia, tanto faz. Agora que tem dinheiro grande em jogo é que vamos ver como quem tem poder decide essas questões.

O Facebook teve ou não a intenção de dizimar os Rohingya? Será a coisa mais difícil de provar. No entanto, as postagens falsas dizendo que as pessoas da etnia ofereciam risco imediato aos budistas renderam lucro ao Facebook. E também foram responsáveis por mortes.

Estamos diante de um caso que será muito interessante para observar como vamos responsabilizar quem age no mundo virtual pelas consequências no mundo real. Até agora, as ameaças eram penais. Estamos diante de reparações financeiras, tudo muda. Seremos capazes de construir um novo mundo que acrescente a todos, já que temos abundância? Fica a provocação para o nosso próximo encontro.

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