Big Techs, soberania e liberdade: como resolver a equação?
Não temos mais Três Poderes, temos Seis Poderes. Executivo, Legislativo, Judiciário, Mídia, Big Techs e Grupos de Pressão Unidos nas Big Techs. A teoria não é minha, é do meu amigo Anderson Godz, fundador da edtech Go New. Mas eu fico repetindo em todo canto para vocês uma hora acharem que eu tive esse insight.
Parece algo muito abstrato e macro, longe da gente. Pela primeira vez na história da humanidade não é. As decisões tomadas dia a dia na relação íntima que temos com a tecnologia estão moldando uma nova estrutura de poder, em que temos dificuldade de enxergar a proteção das liberdades individuais.
Sou uma eterna otimista. Creio que, à medida em que desprogramamos nossa mente analógica e começamos a entender a nova dinâmica de poder, as soluções e caminhos irão surgir de quem já tem experiência em diversas áreas além da tecnologia.
Veja esse texto como parte do meu esforço para fazer com que você seja mais um cidadão a contribuir com a sua experiência pessoal para a defesa das liberdades individuais no mundo da digitalização e hiperconexão. Vou partir de casos concretos para provocar uma discussão e espero que você me ajude a evoluir nesses temas.
Começo com uma treta que dominou toda a imprensa, o YouTubber Monark, do Flow Podcast contra o YouTube. Vou ficar só nessa parte, embora saiba que a treta foi bem mais comprida. Também vou ficar nos fatos apenas.
Depois de defender que fosse legalizado um partido nazista no Brasil sem informar que Hitler só chegou ao poder pela aplicação dessa mesma tese de liberdade radical, o Flow Podcast voluntariamente tirou o vídeo do ar. Fez mais, tirou Monark da sociedade da empresa, que tem 10 podcasts e mais de 90 funcionários.
O Ministério Público entrou em ação com providências legais. O Museu do Holocausto convidou Monark a fazer uma visita e entender a gravidade do que disse para milhões de pessoas entre um e outro whisky. Parlamentares e organizações da sociedade civil programaram eventos de conscientização sobre o Holocausto. Não podemos esquecer para não repetir.
Parece que foi um caso lapidar em que tanto as instituições quando a sociedade civil impuseram limites com ações objetivas e proporcionais, dentro de suas esferas de atuação. Mas a polarização criada pelas redes sociais nos dá uma eterna sensação de que “ninguém está fazendo nada” e “fulano continuará fazendo isso impunemente”. Pense quantas vezes você sentiu isso.
Provocar essa sensação é interessante para quem tem poder mas não instituído, ou seja, mídia, Big Techs e grupos de pressão. A institucionalidade que conhecemos não teria dado conta, então é necessário lançar mão de medidas urgentes e autoritárias, mas só desta vez.
Nas redes, o sentimento de que “ninguém está fazendo nada” se mistura com o schadenfreude, satisfação quando um adversário se dá mal. É a tempestade perfeita para fazer alguém abrir mão da própria liberdade sem perceber.
Dias depois de todas as medidas tomadas, muitos influencers continuavam faturando com o “ninguém fez nada, ele precisa ser punido”. O YouTube decidiu inventar uma punição inédita no mundo, que não está nem na lei brasileira nem nas regras de utilização da plataforma. O Monark – e não o canal onde houve a infração – não pode mais monetizar na plataforma.
Uma Big Tech tentar essa cartada não me surpreende, a surpresa é isso não ser percebido porque as pessoas ficam obcecadas em punir alguém e realmente achando que nada foi feito ainda.
Exemplifico com a nossa mente analógica. Imagina se toda empresa que, direta ou indiretamente, contribuiu para aquela transmissão pudesse simplesmente determinar que aquele consumidor específico não pudesse mais usar seus produtos para aferir lucro. É o que o YouTube fez e a imprensa apoiou de forma maciça.
Então a empresa de energia elétrica poderia, diante de uma discordância com um cliente, impedir que ele usasse seus produtos para aferir lucro. Ele não seria cortado, poderia usar energia elétrica para sua vida pessoal. A companhia telefônica que providenciou a internet do episódio poderia fazer o mesmo. Onde iríamos parar?
A distorção aqui é de foco, causada pela polarização. As pessoas pensam no Monark porque é a treta da semana, não pensam em si, perdem o senso de sobrevivência. Avalie uma empresa alinhada a um governo autoritário. Ela poderia impedir as atividades econômicas de qualquer órgão de imprensa? A imprensa aplaudiu isso, a criação dessa brecha. Estamos em terreno pantanoso.
Quando a imprensa e intelectuais aplaudem um avanço sobre as liberdades individuais com justificativa moralista ou da exceção do caso, normalizam esse tipo de pensamento. Há quem diga que não temos tradição democrática no Brasil, por isso seria tão fácil enredar as pessoas dessa forma.
Infelizmente, temos exemplos até na maior democracia do mundo, os Estados Unidos. Existe um esforço internacional monumental para decidir como lidar com o novo jogo de poder criado pela existência das Big Techs. As empresas querem evitar o máximo de regulação e tentam ter mais poder, algumas vezes mandam mais que o poder estabelecido.
Um caso emblemático é o do Telegram, que continua funcionando no Brasil e nem atendeu o então presidente do TSE, ministro Barroso. Em países onde as regras são claras e realmente cumpridas, eles respondem. Na mesma semana em que esnobou nossas autoridades, o Telegram se submeteu voluntariamente às regras criadas pelo governo alemão para a arena do debate digital.
Existe uma tendência de focar o debate na superfície. Monark deve ou não fazer um podcast? O Telegram deve ou não funcionar no Brasil? A questão é muito mais profunda.
Nossas instituições estão dando conta de proteger as liberdades individuais dos cidadãos brasileiros diante desses novos poderes? A opinião pública tem clareza de que precisamos ter especial cuidado com violação de liberdades em tempos de mudança como este?
Muitos já chamam as Big Techs de Empresas Estado. Efetivamente, têm mais poder que as instituições de diversos países do mundo. No caso do YouTube x Monark, houve algo bem interessante. A Big Tech diz ter tomado medidas para combater a ideia tóxica da liberdade radical, só que essas medidas são a prática da liberdade radical.
O que foi feito não tem nenhum respaldo legal, não havia previsibilidade desse tipo de medida nem na lei nem nas regras de uso da própria empresa, ela não se submeteu a nenhuma instituição brasileira para decidir e parece não haver quem se contraponha a essa força. Nem a imprensa livre que também é mediada pelo YouTube.
Pequenos precedentes criam hábitos, processos e formas de pensar. As Big Techs não são monstros, são gigantes financeiras que lutam para não se submeter ao poder institucional, ter liberdade radical em que ditam regras. O poder institucional ainda tenta entender como lidar com isso, já que são empresas globais e centenas de regras locais.
Uma forma eficiente de dobrar o poder institucional é ter mais poder sobre a vida dos cidadãos do que as instituições que ele elege. É o caso. Nenhuma instância governamental pode criar regras novas para punir um único indivíduo nem agir contra ele ao arrepio da lei. O YouTube efetivamente pode aqui no Brasil.
A nossa rotina é cada vez mais dependente de produtos das Big Techs e não falo apenas da parte psicológica ou do tal “vício” em internet e redes sociais. Lembra quando o Instagram e o WhatsApp caíram? Muita gente teve um impacto financeiro enorme porque suas atividades foram inviabilizadas.
A pandemia acelerou o uso do que estivesse à mão para buscar alternativas de organização de negócios e da vida. Muita gente demitida, por exemplo, montou lojas no Instagram e recebe por ali. Diversas empresas concentraram suas vendas em entregas e atendem via WhatsApp, até cobram por esses sistemas.
Os avanços tecnológicos são tão rápidos que não percebemos e é fato que resolvem problemas práticos das pessoas. O risco de aceitar tudo de forma acrítica está em não perceber avanços de poder sobre as liberdades fundamentais. Eles são sutis.
Um caso interessante é do fundador da New Discourses, James Lindsay, um crítico da cultura Woke e do Identitarismo (não confundir com pautas identitárias justas e que têm conexão com direitos reais das pessoas).
Ele descobriu que havia um veto para que ele fosse citado por outros usuários do Instagram, sem que ele fosse avisado ou que houvesse qualquer regra prévia com esse tipo de sanção para usuários. Pode parecer uma bobagem, mas tem impacto em todo o sistema de acesso e buscas ao trabalho dele. É uma forma de moldar artificialmente um mercado específico.
Andy Ngo, autor do Best Seller Unmasked, teve sua conta congelada no Twitter por supostamente revelar dados privados de outros usuários. Ocorre que a situação não era essa, mas algo que beira o bizarro.
O jornalista independente revelou diversas histórias de violência e abusos cometidos em nome do movimento “Antifa”, que não é uma associação que exige inscrição. Qualquer um pode dizer que fez algo extremo por ser Antifa. Ele recebe diversas ameaças e uma delas veio de um email anônimo, que ele postou em sua conta do Twitter. Ele é que foi suspenso. O print do email apócrifo foi considerado revelar dados privados de usuários.
Também parece um pequeno detalhe, mas é uma interferência no direito de denúncia da sociedade civil. Já vivemos em um mundo em que “Fulano tuitou tal coisa” é manchete dos grandes jornais dos mais diversos países. Escolher, sem obedecer à lei e a nenhum critério lógico o que pode ser dito neste espaço digital distorce o noticiário e a percepção de realidade.
A ativista feminista Andreia Nobre listou uma infinidade de contas de outras ativistas que foram silenciadas. Aqui muita gente pode achar estranho, já que as plataformas têm fama de ser progressistas e fazem esse discurso. Existe atualmente um embate entre o feminismo e a militância trans em todo o mundo.
Não se trata de um embate entre mulheres e pessoas trans nem entre quem milita por igualdade de gênero e inclusão de pessoas trans, é algo diferente. O grupo que eu chamo de “flanelinha de minoria” é que causa os problemas.
O “flanelinha de minoria” é alguém que resolve cuidar de uma minoria específica e muitas vezes nem faz parte dela. Tal como o flanelinha, ele não quer saber se a minoria deseja ou não ser cuidada por ele, ele vai cuidar de qualquer jeito e a minoria que arque com os custos disso.
As contas de feministas acabam suspensas principalmente em debates sobre banheiros unissex, transição de gênero em menores de idade e trans no esporte. Basta a denúncia em massa por um grupo para que uma conta seja suspensa, com ou sem razão.
Na correria do dia a dia, a gente acaba até esquecendo que isso aconteceu, mas algo importante muda. Essa dinâmica de triagem do discurso público subverte os princípios democráticos. Passa a valer a lei do mais forte ou do mais violento. As liberdades individuais perdem proteção.
Como isso é feito de maneira sistemática, diariamente e numa velocidade incrível, perdemos o passo de como muda o jogo de poderes nas sociedades democráticas. As não democráticas já estabeleceram regras claras. São os Estados ditatoriais que controlam os cidadãos de acordo com suas regras, não empresas privadas.
O Partido Comunista Chinês, por exemplo, decidiu que essas Big Techs não operam em seu território. O Yahoo, admitido depois de revelar os dados de dois dissidentes que acabaram presos, resolveu sair ano passado. Não dava conta das novas exigências do governo. O Linkedin decidiu encerrar as operações depois do pedido de derrubar contas de quem trabalhasse falando de direitos humanos na China.
A Rússia, outra potência ditatorial, tem estratégia diferente. A bilionária máquina de propaganda russa manipula as redes com o tipo de propaganda política que interessa ao governo Putin. Meu primeiro artigo aqui no Instituto Montese foi um mergulho nessa dinâmica.
Outras ditaduras menores, como os Emirados Árabes Unidos, encontraram uma estratégia diferente. Usam a soberania para dar poderes ilimitados a Big Techs para operar à revelia da lei de outros países. É para lá que o Telegram se mudou quando o governo da Rússia, de onde é originário, exigiu revelação de dados de usuários.
O governo Putin reagiu duramente e proibiu o Telegram. Na prática, ninguém conseguiu impedir a rede de operar no próprio país. O Irã tentou, mas a inteligência iraniana já admitiu que 45 milhões de cidadãos, mais de metade do país, continua usando o aplicativo “proibido”. A Rússia acabou liberando de volta.
No modelo de empresas que são vitais para outros ramos da economia, temos uma oportunidade de concentração de poder inédita para pequenos países, principalmente ditatoriais. Ao abrigar uma Big Tech e dar a ela liberdade ilimitada, exercem poder em países muito maiores.
Ditaduras tomam decisões de forma mais rápida que as democracias. Não quer dizer que tomem decisões melhores. É complicado decidir o jogo de poder entre soberania política e domínio econômico caso seja necessário levar em conta as liberdades individuais.
É nesse imbroglio que estamos. Preservar liberdades individuais tem como ponto central a vigilância para manter a liberdade de expressão e a liberdade econômica. Um exercício abusivo dessas duas liberdades pode manipular a opinião publicada e a opinião pública com argumentos moralistas e autoritários.
Casos flagrantes de avanços contra liberdades individuais, principalmente a manipulação do debate público, tendem a ser tratados como exceções em nome de um bem maior.
Fulano fez um discurso de ódio perigoso, então foi absolutamente necessário aplicar a ele uma pena não prevista antes e completamente desproporcional, imposta por quem nem tem essa autoridade. Ao ler o texto, parece injustificável, mas é algo naturalizado no debate público polarizado e em tintas carregadas.
Qual seria a solução? Promover regulações apressadas e rígidas que praticamente criminalizam as Big Techs e as submetem a qualquer desejo de governos soberanos é uma tentação enorme. Mas não acredito que copiar o que as ditaduras fazem garantiria respeito às liberdades individuais dos cidadãos.
Ainda não existe um modelo pronto e acabado de como é possível preservar a soberania das nações, os direitos individuais e a liberdade econômica ao mesmo tempo nesse novo mundo.
A Alemanha construiu um sistema que diversos governos democráticos observam de perto. É uma mistura entre órgão regulador, ação da sociedade civil e responsabilidade das Big Techs sobre o risco do próprio negócio. Em muitas partes do mundo, as plataformas são isentas de responsabilidade sobre ações dos criadores de conteúdo. Na Alemanha não.
Mas falamos de um país que tem condições objetivas de impor a lei e com um povo que tem noção dos próprios direitos. Além disso, o processo de superação das chagas do nazismo formou uma cultura especialmente atenta às tentativas autoritárias mais nefastas.
Seria possível ter modelos tão eficientes nas demais democracias? Sinceramente, espero que sim. É preciso, no entanto, que as autoridades e os formadores de opinião tenham a humildade de aprender sobre a dinâmica do universo digital.
Talvez essa mudança tecnológica também mude a dinâmica do poder institucional. Os países mais fortes não necessariamente seriam os maiores em território e em população, mas os que criem condições perfeitas de operação para gigantes econômicos. A mudança está em curso. Nossa questão é como garantir as liberdades individuais.