Todos os posts de Malu Lima

Política e religião

Antes das eleições, a deputada estadual paulista Janaína Paschoal, fez um discurso em que chorou ao apelar ao presidente Jair Bolsonaro que não oponha os brasileiros com base na religião.

Obviamente progressistas receberam a fala com o maior deboche do mundo, simplificando o que disse a deputada. Poucas pessoas têm realmente prestado atenção no perigo de relacionar religião e política de forma divisiva.

Não é um fenômeno brasileiro, mas algo que aparece com mais força em diversos países do mundo. Temos teocracias sobretudo no mundo árabe e há muita controvérsia sobre limites religiosos.

Aqui no Brasil, o crescimento do número de fiéis evangélicos é o grande fato religioso do século XXI. Esse meio, no entanto, é desprezado pela elite intelectual e cultural. Não pela elite política, que depende mais de votos do povo que de aplausos dos seus.

Vivemos um abismo entre o que pensa a maior parte do povo e os que analisam comportamento político. E mesmo com uma tradição de convivência pacífica entre religiões, elas podem ser instrumentalizadas para o confronto com objetivos políticos.

Tem ocorrido no Brasil nos últimos anos e é um movimento que passa despercebido dos principais analistas. No entanto, diferente do embate ideológico, o embate religioso é sobretudo afetivo.

Religiões tendem a ser excludentes entre si. A convivência pacífica entre pessoas de religiões diferentes ocorre em ambientes de total liberdade de culto.

Quando existe a instrumentalização do discurso e da organização religiosa para a política, a população é inevitavelmente colocada em rota de conflagração. Não é, felizmente, o cenário que temos por aqui.

No entanto, não convém colocar gasolina nas pequenas chamas dos atritos que já começam a ocorrer entre grupos evangélicos e outras religiões.

O exemplo mais claro do preço da mistura entre religião e política está no mundo islâmico.

A ocupação do Afeganistão pelo Talibã completou seu primeiro ano. No início, como eles fizeram declarações acenando para o ocidente e dizendo que respeitariam direitos de todos, não se imaginou que repetiriam o filme macabro que já vimos por lá. Repetiram.

Os compromissos religiosos são de vida e morte. Aliás, são de além da vida e da morte, de eternidade e salvação da alma. Por isso, quando colocados na política, tendem a subverter toda a lógica da política.

As mulheres afegãs ainda estão nas ruas protestando, apesar de toda a pesada repressão sobre elas. Não desistem porque sabem exatamente diante de que tipo de força estão.

Recuar é ser automaticamente esmagado. Não há opção diante da mistura entre fé e poder político. A dignidade humana acaba completamente relativizada.

Outro caso que chama a atenção é do atentado cometido contra o escritor Salman Rushdie, vítima de um ataque com faca durante um evento literário nos Estados Unidos.

Quando ele lançou seu livro “Versos Satânicos” em 1989, virou alvo de uma fatwa do Aiatolá Khomeini, então governante do Irã. Fatwas são ordens religiosas de assassinato.

Para o líder, diante da ofensa a Maomé feita pelo livro, todo muçulmano passava a ter o dever moral de assassinar Rushdie. O governo também ofereceu recompensa de US$ 3 milhões para quem o fizesse.

O escritor passou anos escondido e contando com um esquema de segurança digno de cinema. Tantos anos depois, poucas pessoas imaginavam ainda a possibilidade de um atentado.

O governo do Irã nega completamente a responsabilidade sobre o ocorrido e diz que a culpa é do escritor, já que a obra dele ofende gente demais.

O autor do atentado é filho de libaneses e nascido nos Estados Unidos. Ele planejou o crime com antecedência, mas a polícia nunca divulgou oficialmente qual seria a motivação.

Tendemos a imaginar uma relação de causa e consequência em que o líder radical dá uma ordem violenta, seus seguidores partirão para a ação e seus detratores tentarão evitar. Não é tão simples assim.

Há outras consequências nefastas. Mais do que convencimento, palavras de líderes criam possibilidades no imaginário das pessoas. Matar alguém por palavras que ofendem a religião passa a ser uma possibilidade que muitos vão julgar absurda e alguns nem tanto.

Colocar um alvo nas costas de alguém é algo muito sério quando vem de um líder. A execução pode ser feita pelos seus ou até por opositores, a vida dá muitas voltas. A questão é que o alvo foi colocado ali com justificativa religiosa, divina.

Essa lógica acaba se esparramando pela sociedade e contaminando diversas outras áreas de convivência do cidadão. Lavar a honra religiosa com sangue passa a ser uma possibilidade.

Há um outro caso envolvendo autoridades iranianas, esse muito mais recente. O governo do país exige o uso de hijab nas ruas. É a cobertura do cabelo, feita por motivo de fé muçulmana.

No país, tanto faz a fé, é lei mesmo. Há muitas muçulmanas que não usam nenhum tipo de cobertura na cabeça no mundo e isso não quer dizer que tenham menos fé. A vivência religiosa é íntima e individual, mas isso se estraçalha com a criação de um Estado teocrático.

Uma das maiores representantes desse movimento é a escritora, jornalista e ativista iraniana Masih Alinejad, que vive nos Estados Unidos. Cerca de dez dias antes do atentado contra Salman Rushdie, ela escapou de um contra sua casa em Nova Iorque.

Os terroristas planejavam o sequestro e assassinato de Masih Alinejad, que pediu aos Estados Unidos reforço no combate ao terrorismo islâmico. Entre os progressistas, no entanto, ela foi acusada de compactuar com a islamofobia.

Segundo documenta o livro “La Traición Progresista”, de Alejo Schapiro, o caso de Salman Rushdie marca a entrada da lógica de combate à islamofobia em Hollywood.

Muitos artistas equipararam a violência de uma fatwa à violência da ofensa cometida pelo autor na obra “Versos Satânicos”. Parece loucura e é, mas também é um tipo de pensamento que tem contaminado as sociedades ocidentais.

Como, na cabeça dos progressistas de Hollywood, os muçulmanos são uma população discriminada sistematicamente e oprimida por microagressões cotidianas, é de se esperar esse tipo de reação.

Muitos subestimaram a diferença entre a violência das palavras de uma obra de ficção que eventualmente ofendam uma crença e uma ordem de assassinato com um prêmio de US$ 3 milhões.

Chegamos a 2022 com esse raciocínio tão sedimentado que veículos de projeção nacional brasileiros sentenciaram que a piada de Chris Rock no Oscar é uma violência igual ao soco na cara dado por Will Smith.

Palavras são controladas para que não se chegue à violência física e muito menos à eliminação de pessoas. Claro que palavras podem ferir mesmo que não levem à violência física.

Aqui falamos da falta de racionalidade, de proporcionalidade, de ver as coisas como realmente são, sem idealizações. Violência verbal é diferente de violência física e ponto.

A mistura entre política e religião tenta equiparar as duas coisas e isso inevitavelmente contamina a sociedade de forma que a gente nem espera.

Não é um mal apenas da nossa cultura ocidental. Fiquei extremamente surpresa ao acompanhar as apurações do assassinato do ex-primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe.

As imagens terríveis circularam o mundo e causaram espanto. O Japão é super restritivo com armas de fogo. Pela imagem que fazemos da cultura japonesa, imaginei que fosse um episódio político completamente inusitado. Não era.

A política japonesa tem um longo histórico de violência. Aliás, o avô de Shinzo Abe, que também foi primeiro-ministro, sofreu um atentado a faca durante o mandato. Sobreviveu.

O autor, militante de extrema-direita, alegou depois que não queria matar, só assustar. Se quisesse, teria conseguido. O neto era de direita e a suposição inicial foi de crime político.

As investigações revelaram algo inesperado. Foi um assassinato religioso.

Shinzo Abe era ligado à “Unification Church”, fundada na Coreia do Sul em 1954 e conhecida aqui no Brasil como “a igreja do Reverendo Moon”.

Ele se declarava o próprio representante de Deus na Terra e, ao mesmo tempo, tinha uma atuação política muito destacada. É o fundador do jornal “Washington Times”, que supostamente defende pautas de direita mas vive mais é de desinformação e alarmismo.

Uma curiosidade: vários dos blogueiros e jornalistas que se dizem defensores de ideias conservadoras no Brasil espalham o noticiário do jornal do Reverendo Moon.

Não é considerada uma religião, mas uma seita controvertida no mundo todo, com diversas acusações vindas de antigos fiéis.

O assassino de Shinzo Abe viu a família perder tudo quando a mãe resolveu doar o que tinham para a Unification Church. Planejou matar o atual líder da igreja e a viúva do Reverendo Moon.

Ocorre que no ano passado Shinzo Abe participou por videoconferência de um evento da seita. O assassino então mudou de alvo, considerou que o acobertamento dos políticos era um dos principais motivos de sucesso das estratégias para tomar dinheiro dos fiéis.

O ex-primeiro-ministro nem era membro da igreja, só mandava vídeos para eventos, como fazem vários outros políticos do mundo. Donald Trump, por exemplo, foi outra das estrelas da ocasião.

O fato é que havia laços antigos e muito bem sedimentados entre diversos políticos do partido de Shinzo Abe e a Unification Church. Após o assassinato, houve a decisão de um corte radical.

No mês de agosto deste ano, logo após o assassinato, o primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida, reformulou completamente seu gabinete. Demitiu todos os ministros que tivessem ligação com a seita religiosa.

Sete ministros foram afastados numa tacada só, mas não foram defenestrados da política. Assumiram posições internas no partido.

A aprovação geral do governo sofreu um abalo depois da divulgação do motivo do assassinato. A população já não sabe se Shinzo Abe deve ser enterrado com honras de Estado, num funeral que está sendo programado para o próximo mês.

Não há como romper completamente os laços entre política e religião por uma razão simples: quem é religioso vive de acordo com a fé e a moral de sua religião o tempo todo, em todo lugar. É um direito garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, inclusive.

O caldo começa a desandar quando a religião é instrumentalizada para as conveniências da política e instituições religiosas servem mais a propósitos políticos do que sagrados.

Ainda que o limite seja uma linha fina, ele precisa existir. É o que separa a política da barbárie.