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O Facebook pode ter culpa no genocídio do século XXI?

Antes de entrar no tema, precisamos falar de genocídio. Lutei comigo mesma sobre fazer ou não essa introdução porque arrisca o texto ficar chato. Concluí que jamais conseguiria fazer algo tão chato quanto a galera que vê genocídio até em barraquinha de cachorro-quente.

A palavra genocídio já ganhou um significado de enfrentamento no debate político brasileiro. Quando isso acontece, cada grupo fechado pega uma palavra que já existe e já tem um significado formal e dá outro para ela. Aqui eu vou ficar com o original mesmo.

Genocídio é uma palavra que foi criada formalmente em 1944 e quer dizer a eliminação física de grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos. É um termo criado logo após o choque do mundo com a barbárie do holocausto para referir-se a ideias macabras também levadas a cabo em outros lugares.

Recentemente aconteceu com a minoria étnica e religiosa Rohingya, que vive em Mianmar, antiga Birmânia. Reli a frase e parece algo distante, exótico, uma ilha pequena e isolada. Mas é tudo gente e um país de 53 milhões de habitantes.

Nunca houve plena aceitação cidadã nem convivência pacífica com os Rohingya em Mianmar. Eles são de origem étnica diferente e muçulmanos vivendo num país gigante de maioria budista. Não têm direitos plenos de cidadania.

Os Rohingyas vivem nessa porção vermelha do mapa, o Estado de Raquine, que faz fronteira com Bangladesh. Não têm o direito de possuir nenhum tipo de propriedade ou terras, o que é uma violação à Declaração Internacional de Direitos Humanos. Também não podem deslocar-se ou casar sem permissão das autoridades de Myanmar, outra violação

Mas o ser humano é criativo e as coisas podem ficar ainda piores que isso. Em 2017 iniciou-se uma onda de violência partindo da polícia de Myanmar e de civis budistas que transformou-se em genocídio, um banho de sangue e tragédia humanitária.

Até 2018, diversos eventos de massacres, estupros e incêndios criminosos nas casas dos Rohingyas deixaram o saldo de 25 mil mortos e 725 mil pessoas expulsas de suas casas. Hoje, 2,5 milhões de Rohingyas deixaram Myanmar. A maioria cruzou a fronteira a pé até Bangladesh e acabou em campos de refugiados.

A chefe do governo da época era a ganhadora do Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi. Ela foi acusada de silenciar diante do genocídio e de não tomar as providências necessárias.

Mas há acusações ainda mais pesadas contra o Facebook, que admitiu oficialmente não ter feito tudo o que podia para conter o furor de limpeza étnica. Parece ingênuo acreditar que adultos seriam levados por redes sociais a cometer uma atrocidade deste tamanho. Será?

Convido você a refletir comigo. Estamos diante do primeiro caso que realmente vai discutir como vamos regular internacionalmente as redes sociais. Há uma resistência em obediência legal e fornecimento de documentos não só aqui no Brasil, no mundo todo. Só que agora a questão é onde realmente dói no Vale do Silício, no bolso.

Refugiados Rohingya nos Estados Unidos e Reino Unido processam o Facebook em US$ 150 bilhões (aproximadamente R$ 850 bilhões) por não impedir o incentivo ao genocídio e lucrar com esse sistema.

Quando ouvimos isso, imediatamente pensamos em propaganda de incentivo. Como o Facebook poderia contribuir com um genocídio? Algum maluco ia aparecer postando “vamos estuprar e matar esses Rohingyas?” e então uma multidão de adultos iria aderir? E a culpa é do Facebook, não desse pessoal?

Talvez o Facebook gostaria que você acreditasse nisso, mas as coisas infelizmente não são tão simples. As pessoas envolvidas em atos bárbaros não diziam acreditar ter a missão de destruir. Elas tinham a convicção de que eram atacadas e precisavam se defender.

Não tem postagem de incentivo do tipo “isso mesmo, vamos matar esse pessoal”. Nada disso. Estamos falando de cidadãos comuns. Eles acreditavam que os Rohingyas eram do tipo de muçulmano que comete atentado a bomba e que o próximo iria ser na esquina de casa.

O Conselho de Direitos Humanos da ONU fez uma investigação detalhada sobre o ambiente social do genocídio. A conclusão é de que o Facebook teve papel determinante para que a tensão já existente descambasse para a barbárie derivada do medo.

A digitalização de Myanmar foi a jato. A população teve pouco tempo para aprender a conviver no universo da Cidadania Digital. Em 2014, apenas 1% dos 53 milhões de cidadãos do país tinha acesso à internet. Em 2017, era o país do sul da ásia com mais acesso à internet.

Mas havia um problema que é comum em diversos países em desenvolvimento: o cidadão não tem como pagar por isso e as empresas providenciam. No Brasil, por exemplo, vários planos pré-pagos oferecem acesso grátis a Facebook, Instagram e Whatsapp. Ótimo, não é? Para quem?

Se o cidadão recebe um print com fake news, ele não tem créditos para checar. Ele vê a rede social de graça, mas não consegue navegar na internet sem pagar os créditos. Em Myanmar, na época do genocídio, acontecia algo muito semelhante. Para a quase totalidade da população, internet era sinônimo de Facebook.

O próprio Facebook admitiu, em 2018, que não fez tudo o que estava a seu alcance para estancar a onda de ódio contra a população Rohingya. Também existe uma ação no Tribunal Penal Internacionql do governo da Gâmbia contra o governo de Myanmar que requisita as comunicações entre militares daquele país e o Facebook.

Antes do início do massacre, as postagens alarmistas dizendo que os Rohingyas estocavam bombas e pretendiam explodir templos budistas específicos em Myanmar viralizaram. Boa parte delas vinha de contas falsas. A maioria continha uma expressão racista na linguagem local que poderia ser facilmente identificada por inteligência artificial. Nada foi feito.

O processo do governo da Gâmbia, que corre também em uma corte de Washington, identifica nominalmente oficiais do governo de Myanmar e as contas falsas que eles usaram no Facebook. São pedidas informações de comunicações entre a empresa e o governo, material que não foi entregue até hoje.

Existem atentados de muçulmanos radicais em diversos países. Nenhum deles teve aviso prévio e ninguém tem carimbo de terrorista na testa. E se, de repente, o grupo do Facebook do seu bairro começasse a ter certeza de que um grupo está estocando bombas e resolvesse agir? E se a polícia desse apoio a vocês? Já não parece tão disparatado assim.

Ocorre que a inteligência artificial do Facebook tinha como identificar a avalanche de perfis e páginas falsas promovendo essa movimentação. Também tinha como identificar o uso de expressões racistas típicas daqueles que defendem o extermínio físico das pessoas da etnia Rohingya. Nada disso foi feito.

Temos dois cenários entre os quais existe uma distância enorme. No primeiro, o Facebook não tem tanta gente envolvida em detecção do idioma local e não percebeu que existia a possibilidade da evolução da violência digital para a real.

No segundo cenário, o Facebook sabia que esses eram os planos das autoridades de Myanmar, manteve as contas sabendo o que iria acontecer e não ligou para as consequências.

São dois cenários profundamente diferentes, certo? Para o Facebook sim. Para quem morreu ou teve a família dilacerada nessa tragédia, tanto faz. Agora que tem dinheiro grande em jogo é que vamos ver como quem tem poder decide essas questões.

O Facebook teve ou não a intenção de dizimar os Rohingya? Será a coisa mais difícil de provar. No entanto, as postagens falsas dizendo que as pessoas da etnia ofereciam risco imediato aos budistas renderam lucro ao Facebook. E também foram responsáveis por mortes.

Estamos diante de um caso que será muito interessante para observar como vamos responsabilizar quem age no mundo virtual pelas consequências no mundo real. Até agora, as ameaças eram penais. Estamos diante de reparações financeiras, tudo muda. Seremos capazes de construir um novo mundo que acrescente a todos, já que temos abundância? Fica a provocação para o nosso próximo encontro.

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como a China controla seus cidadãos em outros países

Softpower: como a China controla seus cidadãos em outros países

As correntes de rede social nos assustam demais quando o assunto é China. Vemos uma superpotência ditatorial a tentar engolir com seus tentáculos tudo aquilo em que acreditamos. É uma visão simplista. Fossem esses o objetivo e método, já teria engolido.

Há muitos anos, a China é o principal parceiro comercial do Brasil e de vários outros países do ocidente democrático. Bastaria uma sanção comercial para poder impor goela abaixo e a contragosto muita coisa que a cultura desses países não aceitam. Não é essa a cultura chinesa, é a do softpower.

Dentro do próprio território, o Partido Comunista Chinês consegue ter um controle bastante razoável da circulação de informação. A liderança mundial em tecnologias de inteligência artificial aplicadas à vigilância torna tudo quase automático.

Já existe hoje na China um sistema de “score social” semelhante a um dos episódios da série Black Mirror. Comportamentos como jogar, falar mal do governo ou abandonar pais idosos diminuem a pontuação. Pontos baixos levam a perda de direitos. Exemplo: comprar passagens aéreas ou de trem.

Milhares de pessoas foram impedidas de fazer viagens porque não tinham score social suficiente. As pessoas também são afetadas pela atitude de familiares. Por outro lado, boas ações e elogiar o governo rendem pontos que garantem descontos em serviços, vagas em melhores escolas e melhores empregos.

Parece assustador para você? E se eu te disser que tem muita gente importante nas democracias ocidentais que também cai nessa tentação?

Vamos começar pelas reações dos próprios chineses ao sistema de controle. Falamos do Partido Comunista Chinês, portanto é natural imaginar que estaremos do lado reprimido, o que perde pontos e não consegue nem viajar de trem. Só que a maioria vê no dia a dia os benefícios do sistema, usufrui deles, sente que a vida é mais fácil.

https://youtu.be/NXyzpMDtpSE

Nessa reportagem da France 24, é interessante a ordem em que as pessoas são apresentadas. A cidadã modelo não é uma militante comunista aguerrida, é só uma mulher que faz tudo direitinho, paga as contas em dia, recicla lixo, doa sangue. E ela ganha descontos e benesses em várias coisas por isso.

Como convencer uma pessoa nessa situação de que o sistema que a beneficia por ser boa é ruim? Será suficiente mostrar que há uma minoria sendo pisoteada simplesmente porque expressou uma opinião ou reivindicou liberdade individual?

Talvez se a cultura chinesa fosse de democracia seria um resultado automático, certo? Errado. No berço da liberdade, as universidades dos países mais democráticos, há quem feche os olhos para os abusos da ditadura chinesa quando beneficiado.

A China é uma cultura milenar, entende do que é permanente no ser humano, não fica perdida em batalhas presas a uma época específica. Status social, vaidade, dinheiro para pesquisas e reconhecimento falam mais alto que a defesa da liberdade, sobretudo para quem crê na ideia de “democracia garantida”.

No nosso imaginário, a China utiliza toda sua liderança em tecnologia para controlar seus cidadãos fora do país. Não é tão simples e nem necessário. É mais fácil manipular ocidentais a fechar os olhos para arbitrariedades diante dos próprios olhos. Nada é imposto ou forçado, falamos em sedução e concessões de princípios.

Você já ouviu falar nos Institutos Confúcio? São apenas um exemplo. Pesquise. É algo mostrado por universidades do mundo democrático como se fosse um alemão Goethe ou um espanhol Cervantes, com a missão de divulgar a cultura. Ocorre que a Human Rights Watch lançou um alerta mundial depois de detectar violações de direitos humanos e vigilância de cidadãos chineses no exterior.

Apesar da condenação e da indicação expressa para que países democráticos interrompessem essas operações, elas continuam em muitos lugares. A Human Rights Watch avalia que instituições acadêmicas ocidentais não têm o preparo suficiente para lidar com a potência do softpower chinês e o risco de contaminação autoritária é gigantesco.

Estados Unidos, Bélgica, Austrália, Dinamarca, França e Holanda decidiram seguir as recomendações. Não foi apenas o relatório da organização de direitos humanos que provocou as decisões.

O documentário “In The Name of Confucius” mostrou de maneira chocante como o comportamento de acadêmicos ocidentais muda da água para o vinho quando são patrocinados com generosidade pelo Partido Comunista Chinês. Fazer vista grossa a perseguições faz parte do pacote, embora a negociação não seja clara.

https://youtu.be/KYa55jk2uVI

Onde fica o maior e mais premiado Instituto Confúcio do mundo? No Brasil. É o Instituto Confúcio Unesp, com unidades em 13 cidades paulistas e 2 em outros Estados. Além das unidades parceiras de Manaus e São Luiz, o instituto está em Ilha Solteira, Presidente Prudente, Marília, Assis, São José do Rio Preto, Jaboticabal, Araraquara, Franca, Botucatu, Bauru, São José dos Campos, Itapeva e duas unidades na capital paulista.

Também há vários outros, em universidades públicas e privadas: Instituto Confúcio na Unicamp, Instituto Confúcio UnB, Instituto Confúcio UFMG, Instituto Confúcio UFRGS, Instituto Confúcio UPE, Instituto Confúcio UFC, Instituto Confúcio UEPA, Instituto Confúcio de Medicina Tradicional Chinesa na UFG, Instituto Confúcio PUC-Rio, Instituto Confúcio FAAP.

Se a liberdade acadêmica fosse um conceito absolutamente inegociável nas democracias, seriam inúteis os esforços do softpower chinês e a tonelada de dinheiro investida nos Institutos Confúcio. Ocorre que relativizamos a liberdade acadêmica, que foi subordinada à militância identitária. Perseguir e calar em nome de um “bem maior” ou “da coletividade” não é mais tabu. Aí é que mora o perigo.

Os casos mostrados no documentário “In The Name of Confucius” jamais seriam possíveis sem a conivência de ocidentais que se dizem democratas. Houve uma escolha deliberada por fechar os olhos para informações internas das universidades vazadas para o Partido Comunista Chinês.

O governo da China pode não ter como atingir cidadãos que conseguiram residência e até asilo em outros países. Ocorre que todo mundo tem família. Professores que denunciaram perseguições acabaram virando alvos dos próprios colegas e destituídos dos Institutos Confúcio no Japão e Canadá.

À medida em que cancelamentos e a lógica da criação de “safe spaces” tornam-se a normalidade, a perseguição a estudantes também não é mais tão chocante. Uma reportagem recente da Pro Publica mostra diversos casos de retaliação a dissidentes chineses em universidades de países democráticos.

A pandemia, infelizmente, ajudou bastante no processo. Aulas e discussões em plataformas online podem ser gravadas. Muito desse material acabou nas mãos do Partido Comunista Chinês, que foi cobrar diretamente das famílias dos estudantes.

Na reportagem, vários deles relatam os apelos desesperados dos familiares para que parassem de falar mal do governo da China, de defender os uigures ou até de prosseguir com os próprios trabalhos de pesquisa.

Grupos organizados de estudantes chineses, que a reportagem e outros estudantes desconfiam ser militantes do Partido Comunista Chinês, usam as mesmas táticas da patrulha identitária. Diante de qualquer reunião em que se critique políticas chinesas, fazem protesto para impedir falas ou cancelar os palestrantes.

Como o ato em si tornou-se corriqueiro, a avaliação dos motivos passa a ser secundária. Acadêmicos são demitidos, impedidos de falar e cancelados pelos mais diversos motivos. Acusações tão infundadas quanto violentas de transfobia, homofobia e machismo são suficientes para que instituições centenárias aceitem censura.

Falar do massacre da minoria Uigur na China seria desmerecer a cultura chinesa, uma espécie de racismo? Talvez cole. O fato é que a censura tornou-se tão corriqueira que os motivos já nem importam mais. Se houver muito barulho, tudo é justificável.

Não há dúvidas de que a China tem maestria em usar a inteligência artificial e as redes sociais para manipular ideias e defender seus interesses. O blog Lawfare, fundado por advogados norte-americanos para proteger as liberdades constitucionais, mostrou recentemente o uso de contas falsas em defesa de interesses do governo chinês.

A realidade é que nada disso pode ser colocado apenas na conta do Partido Comunista Chinês. Ele segue seus princípios, sua moral e sua forma de pensar e coloca à prova os regimes democráticos. E é aí que precisamos estar atentos.

A ilusão da certeza da estabilidade democrática nos faz abrir mão da vigilância, especialmente quando a tentação do status e da vaidade entra em jogo. Nos acostumamos a pensar em Guerra Fria, em jogo de forças bélicas, em subjugar. Ocorre que o tabuleiro agora é outro, inclui o softpower.

A China não conseguiria controlar seus cidadãos que vivem em democracias sem o apoio de cidadãos dos países democratas, muitos deles lideranças que publicamente defendem a liberdade de expressão. Ocorre que efetivamente consegue e tem ajuda não por uso de força, mas por sedução.

Quanto mais a tecnologia avança, mais precisamos entender de gente. Não há dúvidas de que os membros do Partido Comunista Chinês sabem muito bem quais são seus princípios e propósitos. Os democratas ocidentais sabem? Mais do que isso, estão dispostos a defender esses princípios e propósitos? Essas são as questões que estão diante de nós.

 

Ramsomware: o crime que desafia o equilíbrio entre potências

 

Dizem que não há crime perfeito, este podemos dizer que é quase. Ramsomware, guarde este nome. No início, há uns anos, confesso ter imaginado que era apenas uma nova forma de golpe digital, desses que a gente ouve falar todos os dias. Geralmente, as pessoas acabam se informando, sistemas de segurança melhoram, os criminosos mudam suas estratégias. 

Estamos diante de algo diferente, uma nova modalidade de criminalidade que usa a tecnologia para se aproveitar da lógica da mudança de valores. Os dados são o petróleo do século XXI. Empresas e governos dependem deles para funcionar, não é o futuro, é o presente. 

Ramsomware é o “sequestro” de dados. A quadrilha invade um sistema e inviabiliza o acesso do dono aos próprios dados. Então pede o resgate em criptomoedas. Você pagaria? No começo, ninguém pagava, mas o caso é que eles sempre devolvem. Virou uma indústria bilionária e um problema geopolítico.

O primeiro caso que chamou minha atenção foi aqui no Brasil, em 2019. O Porto de Fortaleza ficou sem funcionar. Descobri que não era o único premiado. Àquela altura, Câmaras Municipais, forças policiais e diversas empresas já haviam sido atacadas em todo o mundo. 

Em 2018, uma empresa chamada Trend Micro fez a pesquisa “Smart Protection Network”, mostrando que 51% das empresas já haviam sofrido ataques ramsomware. Alguns tinham sido bem sucedidos e outros não, foram interrompidos. Avalie o potencial desse tipo de crime após a digitalização forçada pela pandemia.

Você viveu este período. A digitalização forçada foi feita para apagar incêndio, não planejada. As brechas de segurança ficaram para depois. Os criminosos, também confinados, precisavam encontrar novos meios de subsistência. Todo tipo de mercado se reinventou, inclusive o do crime.

O ano de 2020 foi decisivo para a organização das quadrilhas de ramsomware. O FBI identificou que a maioria dos golpes vinha de 12 cartéis, que faturaram US$ 18 bilhões no primeiro ano da pandemia. Antes, os pedidos de resgate eram na faixa dos US$ 150 mil. Por aqui, havia até pedidos de R$ 5 mil. Com a digitalização forçada, surgiram novas oportunidades. 

Um oleoduto bloqueado nos Estados Unidos pagou US$ 4,4 milhões para poder voltar a funcionar antes de comprometer a economia global. Este ano, a brasileira JBS pagou US$ 11 milhões para ter seus dados de volta. A CVC ficou 12 dias sem poder operar na bolsa de valores devido a um ataque ramwsomware. Não é sabido se e quanto a empresa pagou.

Os Estados Unidos foram o país mais atacado, numa posição absurdamente destacada em relação aos demais. O DOJ decidiu criar um departamento especificamente dedicado à investigação internacional de ramsomware. Quadrilhas começaram a ser identificadas e o governo norte-americano acusou oficialmente e abertamente a Rússia de proteger e cooptar esses criminosos.

Os cartéis de ramsomware têm uma estrutura curiosa que mistura a de células terroristas tradicionais com a dos cartéis de drogas colombianos do final do século passado. Nem todas as pessoas de um cartel se conhecem, as células funcionam separadamente, em diversos locais do mundo. Pegar um não significa chegar a todos. Quem financia as operações tem relações de rivalidade mas também de parceria com outros cartéis. 

Cartéis unem-se em negócios específicos, financiam a atuação de células e até a busca por novos mercados. Utilizar este modelo sem a necessidade de transporte físico de mercadoria e dinheiro facilita muito a vida dos criminosos e dificulta a das autoridades. Além disso, traz um problema grave porque não há fronteira real para eles.

As primeiras investigações do FBI mostraram que diversos desses criminosos estavam em solo russo. Há acusações diretas de proteção a alguns deles, em um esquema em que não seriam extraditados por crimes no exterior e também não atacariam empresas e o governo da Rússia. 

Já houve conversas entre os dois governos sobre o tema. O governo da China também preocupa-se bastante com a questão, mas está em situação diferente, já que domina com mão forte todo sistema de tecnologia e dados do país. 

“Nós não temos um problema de ramsomware, nós temos um problema de Rússia”. A frase forte foi postada no Twitter por Dmitri Alperovitch, especialista em segurança na web, fundador do grupo CrowdStrike e CEO do Think Tank Silverado Policy Accelerator.

https://twitter.com/DAlperovitch/status/1392335162667671555

O cenário mudou bastante este ano porque o crime perfeito deixou de ser perfeito. O FBI já consegue recuperar resgate pago em criptomoedas e rastrear integrantes de quadrilhas de ramsomware. 

Neste mês de novembro de 2021, o FBI prendeu na polônia um cidadão ucraniano envolvido com o ataque à empresa de software Kaseya. Foram recuperados US$ 6,1 milhão do resgate. Em outra operação, não houve prisões mas foram identificados os responsáveis e resgatados US$ 2,3 milhões.

Conforme as autoridades norte-americanas tornam-se mais eficientes no combate ao ramsomware, a tendência é que outros países tornem-se alvos. Abordo aqui apenas uma possibilidade deste tipo de ação, a de obter o resgate em criptomoedas pelos dados sequestrados, mas há inúmeras outras.

Os dados em si têm valor inestimável. Caso vazem, podem alterar relações políticas entre países e o valor de empresas na bolsa. Podem, inclusive alavancar o preço das criptomoedas específicas nas quais os criminosos pedem o resgate. É um tipo de criminalidade que não está mais exatamente à margem, manipula o sistema, infiltra-se sem precisar infiltrar indivíduos.

Este tipo de criminalidade desafia autoridades de todos os países. Serão necessários acordos e alianças estratégicos para que estes criminosos não acumulem poder demais a ponto de subjugar forças que hoje são maiores que eles. As grandes potências já acordaram, mas o tema ainda parece ficção científica para a maioria das pessoas.

Você saberia identificar se está acontecendo um ataque ramsomware no seu computador? Eu não. Então resolvi conversar com quem entende e dividir isso com você. O Mauricio di Cunto, perito forense especializado em dados eletrônicos para tribunais. 

A primeira coisa é saber que os ataques ultimamente são direcionados a empresas maiores e órgãos públicos, lugares que têm um sistema interligado. Nessas situações é que precisamos ter atenção e sair do piloto automático de ficar tentando reiniciar máquina ou consertar as coisas.

A maior chance de reverter e até evitar o ataque está em perceber logo e desligar todos os computadores da rede, mesmo que seja desconectando fisicamente a ligação com internet e servidor. 

Os ataques seguem sempre a mesma sequência. Alguma área começa a ter dificuldades para acessar o banco de dados que usa sempre. Por exemplo, um dos relatos que ouvi começava com as recepcionistas tendo dificuldades para acesso às agendas da empresa.

Pouco a pouco, outros setores vão tendo problemas semelhantes, que não parecem tão graves. É sempre não conseguir acessar algum dado usado no dia a dia. Nossa tendência é ficar tentando ou reiniciar a máquina, aprendemos assim. O golpe foi desenhado para contar com essa reação. Se, em vez de fazer isso, a pessoa desconecta a máquina e chama o TI, a chance de sucesso cai bastante.

Parece assustador como tudo o que é novo. Por um lado a tecnologia faz com que o crime organizado tenha superpoderes e tentáculos inimaginávies. Mas, por outro, também diminui a necessidade de uso da violência e deixa rastros que antes não ficavam marcados. 

Vivemos uma era de mudanças. A principal delas talvez seja enfrentar mais uma polarização, entre o institucional e o desafio à institucionalidade. Se superpotências rivais não estiverem unidas, podem ficar de joelhos diante de quem tem poderes para desafiar a institucionalidade. Caso cedam demais, colocam em risco sua visão de mundo. É um desafio e tanto.

O plano de um mundo dominado pelo Partido Comunista Chinês até 2049

 Analistas alemães alertam que a China está expandindo sua economia e influência durante a pandemia e tem objetivos claros de dominação

O plano de um mundo dominado pelo Partido Comunista Chinês até 2049
Se você chegou aqui com apetite para uma deliciosa teoria da conspiração, infelizmente não tenho nada a oferecer. Não existe nenhum plano secreto e obscuro engendrado pela China para dominar o mundo, trata-se de um plano claro, pragmático, centrado em interesses econômicos e que se aproveita de oportunidades geradas pela pandemia de coronavírus. A análise não é minha, é da Deutsche Gesellschaft für Auswärtige Politik, Sociedade Alemã de Relações Exteriores, entidade fundada em 1945 e responsável pelas principais publicações na área no país. (O artigo completo, em inglês, está aqui.)

A história da humanidade é marcada por disputas sobre a liderança mundial e, nesse momento, devido a uma série de configurações políticas, mas sobretudo econômicas, o Partido Comunista Chinês acredita ter condições de avançar em um objetivo tradicional, a substituição das relações competitivas entre países por um modelo “harmonioso”, desenhado e gerenciado pela China. Esse é uma política oficial, que tem nome: 中国特色大国外交理论 ou “Teoria da Diplomacia de Grande Potência com Características Chinesas”.

A principal vantagem atual do Partido Comunista Chinês sobre os governos democráticos é o domínio que ele tem sobre as práticas de desinformação e propaganda, utilizadas para manipular mais de um bilhão de pessoas há décadas. Atualmente, essas técnicas são a maior força econômica mundial, motor das “Big Techs”, as indústrias mais ricas da história da humanidade. Pela falta de experiência, governos democráticos sequer levam a sério algo que pode mudar a vida de toda a população.

Enquanto a comunicação dos governos democráticos tem a tradição de ser centrada em fatos e transparência, o Partido Comunista Chinês especializou-se em narrativas, sutilezas, versões e omissões estratégicas. Em abril, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, escreveu um artigo na revista ideológica Qiushi (Buscando a Verdade) com o seguinte título: ” Tomando o pensamento de política externa de Xi Jinping como um guia – impulsione e construa a ‘Comunidade do Destino Humano’ por meio da Cooperação Global no Combate ao Vírus”.

Muito provavelmente os inteligentinhos de plantão dos países democráticos não levarão nada disso a sério. A Teoria da Comunidade do Destino Humano, em chinês 人类命运共同体, foi apresentada publicamente em 2013 pelo próprio Xi Jinping, presidente da China e Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês, num discurso público no Instituto de Relações Internacionais de Moscou. Trata-se da ideia de substituir a ordem mundial que se consagrou com a ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos após 1945 por algo que seja mais benéfico para a China.

O plano tem três fases, a primeira até 2025, a segunda até 2035 e a final até 2049. Na primeira, a intenção é conseguir liderança em diversos setores econômicos, com destaque para o das novas informações, análise de dados e inteligência artificial. Caso a China consiga consolidar o que deseja, terá duas formas de pressão muito fortes sobre todas as democracias: econômica e do controle da opinião popular. Aqui, pouco importa o que as pessoas pensem sobre a China ou o Partido Comunista Chinês, a questão é economia. Os chineses já são investidores da “Big Techs” e conseguem manipular a opinião pública a favor dos interesses dos setores econômicos que querem dominar.

A partir do domínio efetivo nessas áreas, 2035 seria um marco para outros vôos, segundo o plano original, dito publicamente em discurso por Xi Jinping no Congresso do Partido Comunista Chinês de 2017: “Novos patamares … em todas as dimensões do avanço material, político, cultural e ético, social e ecológico”. Nesse mesmo discurso, o líder chinês previu que o país se tornaria capaz de vencer qualquer guerra, já que elas passariam a um novo patamar totalmente dependente de tecnologia, uma área já dominada pelo país tanto na produção quanto no uso eficiente.

Por que 2049? O marco está inclusive na Constituição da China, com o nome de “Rejuvenescimento Chinês”, parte do “Sonho Chinês”, marcando o centenário do Partido Comunista Chinês.
“O caminho do avanço político socialista com características chinesas é um requisito para manter a própria natureza do Partido e cumprir seu propósito fundamental”, explica Xi Jinping.

Anteontem, numa reunião que condecorou heróis do combate ao coronavírus, o presidente da China voltou a falar no conceito de “Rejuvenescimento Chinês”. Pediu que o espírito de luta contra o vírus seja convertido em força para construir um socialismo moderno e finalmente chegar ao “Rejuvenescimento Chinês”. As declarações foram registradas no site oficial do governo da China exatamente com as seguintes palavras:

“A batalha contra o COVID-19 também demonstrou o poder dos valores socialistas centrais e da refinada cultura tradicional chinesa, que fornecem grande motivação e ajudam a construir consenso e reunir recursos, disse Xi Jinping. Ele disse que o amplo apelo de construir uma comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade é o caminho certo para a humanidade superar os desafios comuns e construir um mundo mais próspero e melhor”, diz o comunicado oficial sobre a reunião.

O Partido Comunista Chinês tem uma imensa vantagem sobre nós, ocidentais, em perseguir objetivos coletivos e compreender a moral alheia. Entendem que, para nós, ocidentais, os refúgios naturais contra um domínio socialista são liberdade de expressão e ideologias de direita. Por isso é tão importante dominar a coleta de dados pessoais e a Inteligência Artificial, para poder maquiar a realidade e simular esses conceitos em países ou empresas dominadas por capital chinês.

Vamos a um exemplo prático? Você acha que Polônia e Hungria, tidas como extrema-direita na mídia, são aliadas ou inimigas da China? Polônia é inimiga e Hungria é aliada. Para nós, ocidentais, o debate ideológico é franco, aberto, realmente acreditamos naqueles conceitos. O Partido Comunista Chinês é mais pragmático: interessa ganhar, não ter razão. Enquanto nos focamos no discurso e no que parece ser, o projeto chinês é todo centrado em ação – até porque tem prazo e metas claras.

O professor Yan Xuetong, um dos maiores especialistas em Relações Internacionais do mundo, decano da Universidade de Tsinghua, defende há muitos anos que a única chance da China de sobrepor o domínio dos Estados Unidos é dividir as opiniões na Europa e rachar o bloco da União Europeia. Isso não é segredo, está no livro dele, publicado em 2013, “A Inércia da História: O Mundo e a China em 2023”. “Nos próximos 10 anos, os desacordos internos na União Europeia aumentarão e sua capacidade de falar com uma voz unificada sobre assuntos externos assumirá uma tendência de queda, então será impossível para a UE implementar uma política consistente com relação à China”, previu em 2013 o intelectual Chinês.

Ele defende que o país passe a fazer o máximo possível de acordos e relações bilaterais com países europeus para evitar que a Europa, em bloco, se posicione a favor dos Estados Unidos e dos valores defendidos por essa liderança, como competitividade e democracia. A abordagem deveria ser dividida em três grupos específicios: Amigos, Inimigos e IniAmigos.

Amigos seriam aqueles capazes de impedir votos anti-China na União Europeia, como Grécia, Espanha, Sérvia e Hungria, além de outros países do sul e sudoeste da Europa, que tenham relações estratégicas, cooperativas ou de amizade.

Inimigos são aqueles que devem ser apontados como tendo um “preconceito” com relação à China. São países como Suécia, Noruega, Polônia e praticamente toda a parte norte da Europa. O tratamento sugerido é acirrar a polarização na opinião pública mas declarar oficialmente que a China não tem nada contra esses países. Para não serem engolidos pela polarização, seriam forçados a não agir contra as políticas chinesas.

IniAmigos são os países que até querem colocar um pé na porta da China para proteger suas liberdades, mas têm interesses econômicos tão fortes que preferem não ter de fazer isso, como França, Alemanha e Reino Unido. A orientação é a aproximação bilateral com interesses econômicos para que não se oponham à China.

O trabalho do DGAP traz 10 sugestões para que a Europa promova segurança democrática, tendo em vista que o governo chinês está utilizando todas as oportunidades possíveis para avançar economicamente e em influência durante a pandemia. A principal lembrança é que os Europeus levam regras e tratados muito a sério enquanto a China simplesmente testa limites, como fez em Hong Kong recentemente. Deixo aqui as sugestões, que creio serem boa reflexão para nós:

1. Fortalecer a resiliência democrática – O modelo é a Agência Sueca de Defesa Psicológica, destinada a identificar, combater e informar os cidadãos sobre processos de coleta de dados, rastreamento, manipulação psicológica e desinformação.

2. Auditar cadeias de fornecimento – Verificar em que indústrias os países se tornaram absolutamente dependentes da China e avaliar a necessidade de reverter.

3. Limitar oportunidades de desinformação – Fazer um pente fino da presença e influência chinesas sobre as empresas de tecnologia presentes na Europa e seu poder de promover desinformação, à semelhança do que já foi feito com a Rússia recentemente.

4. Diversificar cadeias de fornecimento – Os governos devem dar suporte aos empresários para encontrar alternativas de fornecedores fora da China nos setores onde o domínio é crítico.

5. Construir alianças confiáveis – Expandir relações comerciais com países que tenham valores democráticos e de liberdade individual.

6. Pente fino nos investimentos estrangeiros – Detectar e impedir investimentos estrangeiros que ameacem a soberania dos países europeus.

7. Rotular fontes de propaganda – Acompanhar as medidas já tomadas pelo governo dos Estados Unidos com relação a diversas agências de notícias do Partido Comunista Chinês que desinformaram durante a pandemia, transmitindo até confissões resultantes de tortura. Em vez de “imprensa”, passariam a ser “missões estrangeiras”.

8. Investigar a atividade da “Frente Unida” 统一战线 – À semelhança dos Estados Unidos e Austrália, criar regras para restringir a atuação do grupo que utiliza subterfúgios para internacionalizar, na sociedade civil, interesses do Partido Comunista Chinês.

9. Proibir tecnologia chinesa – Recentemente, as Forças Armadas da Alemanha baniram o uso do Tik Tok entre todos os seus membros. Decisão semelhante deve ser tomada com toda tecnologia que tenha instrumento de vigilância no âmbito dos servidores públicos e pessoas ligadas a governos.

10. Levar a segurança digital a sério – Enquanto Europa e Estados Unidos vêem a internet e suas regras como garantia dos próprios cidadãos, a China expande para diversos países sua tecnologia e suas regras de coleta e controle de dados. É preciso organização para dar suporte tecnológico com valores democráticos a países em desenvolvimento, sobretudo na África.

Não há democracia e liberdade sem proteção e segurança. “Pessoas nas nações democráticas precisam entender que a democracia requer segurança ou proteção e não vai necessariamente triunfar – ou nem mesmo sobreviver – simplesmente pela virtude de ser um sistema mais humano”, diz a análise do DGAP. Antigamente, poder militar era suficiente para defender um país, hoje não mais.

A tecnologia nos trouxe duas novas lutas. A primeira é a complexidade do sistema financeiro internacional, que pode deixar um país totalmente de joelhos diante de um tirano aos poucos, com investimentos estratégicos. A outra é a desinformação, que ninguém leva tão a sério quanto deveria no mundo democrático, mas é mais eficiente que a força bruta nas mãos dos tiranos. A prisão mais segura é a ilusão da liberdade.

 

Quanto custa a máquina de propaganda russa? O orçamento é público, confira

O governo Putin acaba de anunciar aumento de 40% na verba para as empresas de comunicação aliadas ao governo em 2021

 

Quanto custa a máquina de propaganda russa? O orçamento é público, confira.
SEPTEMBER 30, 2020
Estátua de Lênin
Você já reparou que quase todos os especialistas em manipulação nas redes sociais fala em técnicas russas de propaganda? A Rússia é, até hoje, uma campeã mundial no quesito propaganda governamental, uma forma eficiente de manter o regime ditatorial em um território tão vasto, diversificado e com conflitos internos. A prisão mais eficiente não é a que precisa de grades e armas, é a ilusão da liberdade. A frase é fácil de falar, mas difícil de colocar em prática.

Todas as técnicas de propaganda política que muitos costumam chamar de “fake news” e confundir com boatos ou notícias falsas vêm da expertise russa e funcionam muito bem nas democracias. Como o pensamento de quem cresce em uma democracia é focado no conteúdo comunicado e na liberdade de expressão, as pessoas demoram a entender qual é a manipulação feita, a do espaço público. Quando entendem e começam a reagir, é tarde, o estrago já foi feito.

Um exemplo simples é a técnica chamada “firehosing”, que significa algo como “regar com mangueira de bombeiro”. Ela pode ser feita com informações falsas ou verdadeiras, tanto faz, o que importa é o fluxo e ter muito alcance. Eleito o alvo, começa-se a disparar informações desfavoráveis a ele, replicadas para o máximo possível de pessoas com a ajuda de impulsionamento pago às redes sociais e perfis falsos automatizados. Quando o alvo estiver empenhado em explicar uma afirmação, é hora de lançar outra e assim sucessivamente, intercalando verdades e mentiras. O objetivo não é convencer as pessoas do conteúdo das acusações, mas da possibilidade de veracidade, o que já fere de morte a honra do alvo.

Desenvolver e implementar com eficiência técnicas de propaganda política num mundo globalizado custa caro. Este ano somente os 6 canais oficiais pró-governo custaram 102,8 bilhões de rublos, um total de R$ 6.610.286.839,38. Coincidentemente, R$ 6 bi é o valor total destinado pelo Brasil ao socorro de micro e pequenas empresas durante a pandemia. O valor pagaria quase 3 meses de auxílio emergencial a mais de 4 milhões de brasileiros.

Isso não é segredo nenhum, é anúncio feito pelo próprio governo russo por meio da TASS, agência russa de notícias, . Este mês, o Ministério das Finanças informou que, em 2020, foi gasto mais do que o previsto inicialmente para financiar esse sistema e há a previsão de aumentar em 40% o valor no ano que vem. O maior interesse é reformar os estúdios da RT em Moscou e fazer com que a TV oficial de notícias do governo russo, o maior gasto de propaganda, crie um serviço em língua alemã.

Controlar a narrativa da mídia é prioridade para o governo russo, sobretudo em tempos de crise como agora, quando as pessoas podem se revoltar. Mas como isso é possível se todos têm acesso às redes sociais e, com ou sem manipulação, podem ler notícias do mundo todo? Desacreditando qualquer fonte que não seja aprovada pelo governo russo. Isso funciona combinando duas estratégias poderosas contra inimigos do governo: comunicadores de estimação que espalham a propaganda russa e são inflados via redes sociais. Eles ganham bem para dizer o que Putin deseja e o conteúdo é replicado em redes sociais com impulsionamento e automatização. Além de colocar os temas do governo em pauta, o processo acaba legitimando os comunicadores de estimação junto à sociedade russa.

Mas os russos não percebem que estão sendo controlados? A gigantesca maioria não, pensa que vive uma democracia. Na verdade, se implantado com a excelência russa, o sistema de propaganda funciona muito bem em todo lugar cujo povo não faça a menor ideia do que é democracia. Na Rússia, por exemplo, a maioria das pessoas acredita que democracia é ter eleições, transparência das instituições e liberdade de expressão. Os russos não colocam na conta que o controle do governo pelos cidadãos e ausência de controle do cidadão pelo governo são indispensáveis numa democracia, então acreditam viver numa mesmo estando numa ditadura.

Os russos votam, falam o que querem na internet, acessam conteúdo do mundo todo e ainda contam com mecanismos de transparência da mudança das leis, como este site governamental que estimula a conhecer projetos de lei e vigiar contra a corrupção. O governo não leva em conta a opinião das pessoas, o cidadão até acessa dados mas não controla o governo e os dados todos coletados via redes sociais chegam às mãos do governo. Assim, ele tem liberdade mas só dentro dos limites que interessam a Vladimir Putin.

Entenda a mídia financiada por Putin
A menina dos olhos de Vladimir Putin é o Russia Today, canal que mimetiza a estética, a linguagem e a forma de apresentação de canais de notícias internacionais. Tem noticiário 24 horas e é o lar dos comunicadores de estimação do governo russo. Tem serviços de notícias em Russo, Árabe, Inglês, Espanhol, Francês e está estruturando em alemão.

A segunda maior verba é do Canal 1, uma televisão no estilo dos canais tradicionais aqui do Brasil, com espetáculo, entretenimento, ficção, reality shows, programas de auditório e momentos de noticiário. No ano passado, essa televisão deu prejuízo de € 96 mi, o equivalente a R$ 633 mi.

Há ainda um outro complexo de rádios e televisões, a VGTRK, herança da época soviética, que atinge todo o país. Essa é a que o público mais claramente liga ao governo por causa do nome “Companhia Estatal de Transmissão de Rádio e Televisão”. Diversas emissoras de rádio e TV governamentais russas passaram a ser subordinadas a essa marca nos últimos 20 anos. O conglomerado controla 80 emissoras regionais de TV e rádio em todas as regiões da Rússia, o canal informativo Rússia 24, os canais nacionais Russia 1 e Russia Culture, o RTR Planeta (canal internacional de notícias em língua russa), a versão russa da TV Euronews, o canal estatal de internet Rússia e as estações de rádio nacionais Radio Russia, Mayak, Culture e Vesti FM.

A rede Zvezda, “A Estrela”, é o antigo jornal oficial das Forças Armadas Soviéticas, hoje subordinada ao Ministério da Defesa de Putin. Imita também a estética, linguagem e apresentação de órgãos de notícia e tem, além do serviço online, TV e rádio.

Outro órgão importante para o governo Russo e que rendeu a primeira sanção da União Europeia a um jornalista é a holding Rossiya Segodnya, que tem uma TV e vários sites de notícias, todos com serviço de vídeo e podcast: Ria Novosti, inoSMI (dedicado a “traduzir” notícias estrangeiras, e a agência internacional Sputnik, que tem escritório no Rio de Janeiro e serviço em português. O CEO dessa holding é tido na imprensa europeia como “principal propagandista do Kremlin” e sofreu sanções da União Europeia por transmitir propaganda russa como se fosse notícia em seu programa de TV durante o conflito com a Ucrânia.

Finalmente, a mais tradicional de todas, com 113 anos de fundação, a TASS, agência oficial de notícias do governo russo.

Toda essa mídia bancada pelo Estado convive com órgãos de mídia independentes russos, jornalistas independentes, mídias sociais liberadas e canais de imprensa internacionais. Diferente do modelo chinês de propaganda, que controla o acesso à informação, o modelo russo de propaganda mira em minar a credibilidade de quem não é aprovado pelo governo e lançar desconfiança sobre a mídia internacional. Isso funciona manipulando mídias sociais e tendo comunicadores que levam ao público propaganda do governo travestida de informação ou opinião.

A desinformação na mídia pró-Putin
A agência investigativa The Insider, diante da divulgação do aumento de 40% no gasto com mídia pelo governo russo, resolveu fazer uma reportagem mostrando quanto ganham os comunicadores preferidos de Putin. Todos eles são encarregados de mesclar propaganda russa na programação normal, apresentando sempre como se fosse uma opinião, dúvida ou questionamento sobre um fato. São todos muito famosos e queridos do público russo. Também são estrelas conhecidíssimas do projeto europeu que monitora a desinformação, “EU x Disinfo”.

O comunicador mais importante para o Kremlin, além de ter um programa de TV também chefia a agência que traduz a mídia internacional para o russo e a agência oficial Sputnik, a única com versão em português de todo esse esquema. O salário total dele nunca foi divulgado.

Dmitri Kiselev – Дмитрий Киселев apresenta um programa semanal na TV Russa e é o chefe da agência de notícias Russia Segodnya. Sabe-se que ganha o valor de 27 aposentadorias – 4,6 milhões de rublos ou R$ 333 mil por ano – para o trabalho de menor valor, o da TV. Ninguém sabe quanto ele recebe para chefiar a agência de notícias, mas ele é tido como o grande propagandista do Kremlin. É uma tarefa geralmente minimizada no ocidente, que caracteriza essas figuras como “espalhadores de fake news”.

Segundo os especialistas do EU vc Disinfo, os serviços oferecidos por Kiselev são muito mais sofisticados, uma espécie de comunicação estratégica de campanha com licença para mentir. “O que pessoas como Dmitry Kiselyov podem oferecer é um produto, que na superfície pode se assemelhar ao jornalismo, mas é antes uma forma de entretenimento, que um governo pode instrumentalizar em apoio a suas políticas, suas guerras; e, o mais importante, é um serviço que pode ajudar a manter um governo no poder ininterrupto e contínuo”.

O principal poder de Kiselev é sua longa vivência jornalística democrática de acordo com as regras ocidentais. Até o início dos anos 2000, era visto como um jornalista independente, liberal e amigo do ocidente. Trabalhou para a TV da União Europeia fazendo programas em russo, tinha a vida profissional ligada aos órgãos jornalísticos com sede na Ucrânia e, em 2012, foi participante International Visitor Leadership Program em Segurança Internacional do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Em 2013 foi contratado por Putin para ser a mente por trás da gigante Russia Segodnya e se tornou um mago da propaganda do Kremlin.

A principal linha de discurso de Kyselev é repetir em seu programa semanal de televisão que a Rússia pode reduzir os Estados Unidos a cinzas nucleares. Pode parecer grotesco, mas é um tipo de propaganda sofisticado que combina o noticiário das agências com o programa na TV, o canal de YouTube e a manipulação das mídias sociais. Entre as peças de desinformação mais famosas estão:
– A democracia liberal é a religião mais sedenta por sangue no mundo.
– Os Estados Unidos apóiam o terrorismo islâmico em todo o mundo.
– O documentário da BBC sobre a corrupção de Putin é uma peça de propaganda ocidental contra o Kremlin.
– Stálin nunca cometeu os crimes denunciados por seu sucessor, Nikita Kruschev.
– O Holomodor foi uma sabotagem contra a União Soviética.
– Os Estados Unidos criticam a Rússia por motivo de russofobia.
– O historiador russo que acusa Stálin de crimes é, na verdade, um lobista que defende o círculo liberal internacional de pedofilia.

Disfarçar a propaganda do Kremlin como jornalismo e adicionar a manipulação das redes sociais é apenas uma parte da técnica russa. A propaganda também é inserida em programas que mimetizam a programação de entretenimento e humor das emissoras ocidentais. É da mistura entre todos os mecanismos de desinformação que se extrai o resultado. Para o ocidente, no entanto, parece apenas a liberdade de expressão de governistas russos. Democratas focam no conteúdo do que é dito, ditadores focam no método de disseminação e controle da informação.

A entrevistadora oficial do Kremlin é a glamurosa Asker-Zade – Аскер-Заде , namorada do dono de um banco ligado a Putin. Recebe em seu programa Actors artistas e altos funcionários do governo russo, sempre para conversas amigáveis e triviais.

O rei da teoria conspiratória governamental foi estrategicamente colocado na programação da emissora de outro banqueiro amigo de Putin, a RTV, especializada em temas como terraplanismo, discos voadores e outras informações do gênero. Mas Andrey Dobrov-Андрей Добров, a estrela do “Dobrov on The Air” fala de temas mais sérios, como acusar a maior empresa independente de auditoria e consultoria da Rússia, a FBK, de ser chefiada por uma espiã da Grã-Bretanha.

Também há o personagem do político lacrador, Alexei Pushkov-Алексей Пушков, especialista em comentar assuntos internacionais. Ele tem um cargo no governo Putin, já teve representação na Duma e é conhecido por sempre aparecer mitando contra outros países nas notícias oficiais. A chamada mais comum nas reportagens é: “Alexei ridiculariza” o adversário do dia.

O comunicador popularesco de estimação do governo Putin é Vladimir Soloviev-Владимир Соловьев, showman e um dos maiores faturamentos em propaganda da TV, apesar de estar já em decadência. Ficou famoso por dancinhas e mostrar golpes grotescos de caratê durante o programa em que mistura notícias popularescas com propaganda do Kremilin travestida de opiniões fortes. Tem um canal no YouTube muito famoso entre os russos e é considerado uma das principais peças da estrutura de propaganda russa.

O propagandista mais bem pago oficialmente e de forma publicamente declarada pelo Kremlin é um humorista da ala do escracho, Artem Sheinin-Артем Шейнин. Ele recebe 100 milhões de rublos por ano, o equivalente a R$ 7,27 milhões. Entre os adultos, é conhecido como “o homem que corria pelo estúdio com um balde de fezes”. Faz piadas agressivas e de baixo nível e, embora se dirija ao público adolescente e pareça absolutamente imbecil, não tem nada de bobo. É jornalista, serviu no Exército Russo, faz parte da cúpula da TV, de onde já foi diretor e editor de programas. Hoje, é líder de audiência absoluto no país. Entre as informações que circulam no programa estão as pérolas:
– Os Estados Unidos financiaram o laboratório de Wuhan que causou o surto de coronavírus no mundo.
– O coronavírus não existe, é uma manipulação internacional de informação.
– Todas as guerras dos últimos 30 anos no mundo foram causadas pela OTAN e pelos EUA, que são russofóbicos.

Chavões que se repetem
O chanceler da Rússia, Sergei Lavrov, visitou Cuba esta semana, como informou o presidente do país Miguel Díaz-Canel Bermúdez em sua conta no Twitter. Na agência oficial de notícias do governo cubano, Granma, uma declaração conjunta que você já deve ter ouvido por aí: “os líderes reconheceram que ambas as nações continuam defendendo o multilateralismo, o direito internacional, os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas e a cooperação entre os países”. A frase repetida por Bermúdez e dita por Lavrov você também já ouviu por aí: “estamos do lado certo da história”.

As teorias conspiratórias dos propagandistas russos dizem que o país deles pode vencer qualquer país do ocidente em qualquer coisa, principalmente em qualidade de vida e saúde. Há, na verdade, um único ponto em que a Rússia venceu todas as potências ocidentais: propaganda política.

Todos os chavões criados pelos russos, das frases comunistas às patrióticas, você vê repetidos no mundo todo. As teorias conspiratórias preferidas dos comunicadores do Kremlin, como o terraplanismo, também se disseminou pelo mundo ocidental. O método usado por diversos comunicadores governistas na Europa e nos Estados Unidos, de escamotear propaganda no que esteticamente e na linguagem parece ser um programa tradicional de TV ou rádio também tem berço na Rússia. As estratégias e táticas mais conhecidas de manipulação das redes sociais para amarrar toda essa narrativa são russas também.

Os estudiosos da propaganda política dizem que é impossível desmentir essa teia de mentiras. A maioria das pessoas acredita e continuará acreditando mesmo diante de provas do oposto, é só desacreditar a prova ou quem falou. Reconhecer ter vivido no engano é um processo muito mais dolorido e não muito conveniente em uma sociedade como a russa. Os russos estão pagando pela própria prisão ideológica e ainda não parece haver uma força capaz de derrotar a máquina de propaganda do Kremlin.