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Conheça a “democracia popular de processo integral”, a democracia falsificada pela China

No início do mês, o jornalista Augusto de Franco, defensor apaixonado da democracia, fez uma provocação irresistível em seu site, Dagobah. Disse que seria interessante fazer uma análise aprofundada do que considera “a maior tentativa da história de falsificar a democracia”. Aqui estamos.
Ele postou a versão em inglês de um documento público divulgado
pela agência oficial Xinhua News por ocasião da comemoração do
centenário do Partido Comunista Chinês e não teve a devida atenção
internacional.
É algo que precisa ser dissecado e analisado cuidadosamente por
pessoas com visões diferentes. Não é fácil compreender a estrutura
por trás do documento e como desfazer a narrativa. O título já
mostra o poder de destruição. China: a democracia que funciona.
Seria apenas uma desfaçatez se fosse algo produzido pelos
blogueiros conduzidos pela coleira por políticos ocidentais. É perigoso exatamente por ser muito bem executado.
Em 23 páginas, o documento recorre à história política de 5 mil anos
da China para legitimar o Partido Comunista como fiador da
democracia. O exercício retórico é sofisticado.
Na introdução, se diz que o Partido Comunista Chinês tentou todas as
formas de democracia utilizadas atualmente no ocidente e elas
falharam. A releitura histórica se funde com a releitura do conceito
de democracia em si.
Há uma mistura perversa entre o conceito de governo do povo com
a possibilidade de ascensão social mediada por um partido que é o
único garantidor da “vontade popular”.
O partido assume o papel que no ocidente geralmente é depositado
no colo de grandes ídolos políticos populistas. Os conceitos de
liberdade e direitos humanos também são pervertidos.
Todo o documento tem um foco muito mais voltado à leitura moral
das situações do que à descrição da realidade. Um exemplo é a
deturpação do conceito de direitos humanos, que parte de uma
mentira para uma justificativa moral.
Na China, os direitos humanos são plenamente respeitados e
protegidos. Viver uma vida de contentamento é o direito
humano supremo.
É a execução perfeita da novilíngua de George Orwell. Não basta
apenas renomear o que desagrada, é preciso criar teorias morais
que degradem algo valorizado na democracia.
Os direitos humanos estão elencados de forma objetiva numa
declaração internacional. Eles são sistematicamente atropelados
pelo governo chinês, acusado diuturnamente dos mais diversos tipos
de violações.
A moralização é a afirmação aparentemente feita pensando no bem
comum. Não existe um “direito humano supremo” e nem se fala de
“vida de contentamento” na Declaração Universal dos Direitos
Humanos.
É uma forma sub-reptícia de justificar as violações sistemáticas de
liberdades individuais apelando ao conceito abstrato de felicidade ou
contentamento. Se a pessoa está contente, então não se pode dizer
que a violação de direitos humanos é isso, afinal estar contente é o
centro da questão. Não existe melhor gaiola do que a ilusão de liberdade. O documento
é a sistematização de um discurso para criar ilusão de liberdade ao
mesmo tempo em que justifica as violações das liberdades.
O que seria então o tal do contentamento? É a sensação de
progresso econômico e de ter as necessidades de subsistência atendidas. A economia da China manteve um crescimento de longo prazo, estável e rápido, e a vida das pessoas melhorou significativamente. A China estabeleceu o maior sistema de
seguridade social do mundo. O número de pessoas cobertas
pelo seguro médico básico ultrapassou 1,3 bilhão, e o número
de pessoas cobertas pelo seguro básico de velhice já ultrapassou 1 bilhão.  A China completou a construção de uma  sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos.
Todo o país se livrou da pobreza absoluta e embarcou no caminho da prosperidade comum. As pessoas ganharam uma sensação mais forte de realização, felicidade e segurança.
A linguagem parece bem intencionada e, por isso, funciona como
narrativa para os mais desavisados. Este parágrafo remonta a um dos episódios mais trágicos da história da China, que só começou a ser desvendado pelo ocidente recentemente. Um livro de Frank Dikötter, professor da Universidade de Hong Kong,
publicado em 2008 trouxe à tona uma realidade ainda mais
devastadora do que se pensava.
“A grande fome de Mao – A história da catástrofe mais devastadora
da China” traz a primeira pesquisa em arquivos do próprio governo
sobre o ocorrido entre 1958 e 1962. As estimativas eram de 30 milhões de mortos pela fome. As novas pesquisas demonstraram que foram pelo menos 45 milhões de mortos.
O professor teve acesso em primeira mão a arquivos contando de forma detalhada o impacto da política chamada de “O Grande Salto para Frente” de Mao Tsé-Tung. Era um plano de expansão econômica aparentemente muito bem feito. A teoria, na prática, era outra.
Hoje, o Partido Comunista Chinês chama o evento de “O Difícil Período de 3 anos”, que seria de 1959 a 1961. A falta de comida para as pessoas teria, segundo a versão oficial, sido decorrência de problemas nas condições ambientais. A contagem oficial é de 15
milhões de mortos.
O ponto mais trágico é que ninguém morreu de fome por falta de
comida, mas por uma política que regulava o acesso a alimentos
para consolidar poder. O novo documento relaciona a subsistência à democracia.
Durante “A Grande Fome de Mao”, a comida era usada como instrumento para garantir que as pessoas cumprissem as tarefas
determinadas pelo Partido Comunista Chinês. As famílias já haviam
começado a ser esfaceladas e as pessoas obrigadas a trabalhar em grandes colônias agrícolas.
Toda a produção precisava ser entregue ao Estado até o ponto em que foi proibido até mesmo cozinhar dentro das casas. O acesso à cantina coletiva era facilitado aos que cumpriam as tarefas. Os que não cumpriam, estavam doentes, dormiam no serviço ou estavam fracos perdiam esse acesso. Muitos acabaram morrendo.
Nessa época, a propaganda oficial vendia a imagem de uma
economia próspera com um povo feliz. Mas os novos documentos mostram uma realidade absolutamente chocante.
O desespero chegou a um ponto em que havia muitos casos de camponeses que desenterravam parentes para comer, era comum o consumo de roedores, terra e cascas de árvore para matar a fome.
Praticamente toda família tem um sobrevivente desse horror. Vender a situação atual como prosperidade e democracia é menos difícil diante dessa memória. Por isso a ideia de relacionar democracia a subsistência é especialmente perversa.
O Partido Comunista Chinês tem o poder de controlar a economia com mão forte a ponto de privar cada um dos cidadãos de toda a dignidade. Já fez isso. Agora utiliza essa memória para dizer que a privação de liberdades individuais é democracia,  já que as pessoas podem comer e estão contentes.
Os conceitos de contentamento e felicidade são altamente subjetivos e fáceis de manipular no discurso político. A ideia da “democracia
que funciona” é calcada exclusivamente na subjetividade.
As instituições democráticas passam por um período de descrédito
no mundo todo. Questionar é natural do processo democrático. Mas
a abertura de qualquer tipo de dissenso é vista pela China como
oportunidade para advogar pelo conceito de “democracia de
consenso”, aquela em que o consenso pode ser democraticamente
forçado.
Se o povo é despertado apenas para votar, mas depois fica
adormecido, isso não é uma verdadeira democracia. Se o povo
recebe grandes esperanças durante a campanha eleitoral, mas
não tem voz depois, isso não é uma verdadeira democracia. Se
o povo recebe promessas exageradas durante a campanha
eleitoral, mas fica de mãos vazias depois, isso não é uma
verdadeira democracia.
Com isso obviamente a maioria de nós vai concordar. A crise
institucional da democracia ocorre justamente porque as pessoas
não se sentem participantes das decisões nem representadas pelas
instituições.
O documento sobre a democracia chinesa fala com empolgação
sobre a inexistência de partidos de oposição. Não é um regime de
partido único, mas todos os outros sabem que estão lá para
colaborar com o Partido Comunista Chinês, não para questionar nem se opor.
Um bom modelo de democracia deve construir consenso em vez de criar divisões e conflitos sociais, salvaguardar a equidade e a justiça social em vez de aumentar as disparidades sociais em favor de interesses estabelecidos, manter a ordem e
a estabilidade sociais em vez de causar caos e turbulência, e inspirar positividade e valorização do bom e do belo em vez de instigar a negatividade e promover o falso e o mal.
O Partido Comunista Chinês tem uma lógica conhecida de forçar o consenso a qualquer preço e atropelando liberdades e diferenças
individuais. É quase delirante a forma como este princípio é distorcido até se encaixar em uma definição moral da “boa democracia”.
Martin Luther King dizia que a paz não é ausência de conflito, é
presença de justiça. Este conceito é completamente subvertido no
pacifismo movido pela mão forte da ditadura.
A democracia é um direito do povo em todos os países, e não
uma prerrogativa de algumas nações. Se um país é democrático, isso deve ser julgado por seu povo, não ditado por um punhado de forasteiros. Se um país é democrático deve ser reconhecido pela comunidade internacional, não
arbitrariamente decidido por alguns juízes auto nomeados. Não existe um modelo fixo de democracia; ela se manifesta de muitas formas. Avaliar a miríade de sistemas políticos no mundo com um único critério e examinar diversas estruturas políticas com regras monocráticas são, em si, atitudes antidemocráticas.
No mundo ricamente diversificado, a democracia vem em
muitas formas. A democracia da China está prosperando ao lado de outros países no jardim das civilizações. A China está pronta para contribuir com sua experiência e força para o progresso político global por meio da cooperação e do aprendizado mútuo.
A ideia é que você pode chamar de democracia se conseguir convencer as pessoas de que é democracia. E isso pode ser feito num regime de partido único, cada vez mais fechado ao mundo exterior, com inúmeros mecanismos de controle social de última geração.
O mais ousado é a proposta de ajudar outros países a consolidar seus regimes e dar um jeito de também chamar de democracia.
Além dos efeitos práticos, é uma narrativa que pega e pode contaminar inclusive o mundo democrático.
Se cada um criar sua versão de democracia e contestar a legitimidade de todas as instituições democráticas, tudo passa a poder ser chamado de democracia. Se nada é suficientemente democrático, tudo também pode ser democrático em alguma medida, sempre buscando melhorar.
Ainda há muito a se analisar sobre este documento, mas parece uma tese que tem tudo para se espalhar, sobretudo diante das crises institucionais nas grandes democracias mundiais.
O assustador é que estamos tão consumidos pelas crises que criamos onde existe democracia que nem atentamos para as tentativas de demolir cada suspiro democrático.

Direito à identidade é o menos protegido no universo digital, mostra levantamento da Neurorights Foundation

Quando se fala em direitos e algoritmos, no que imediatamente a gente pensa? Nos preconceitos embutidos nos algoritmos. Eu também penso nisso, influenciada pela literatura que consumo e pelos documentários que vejo.

Hoje, algoritmos decidem muitas coisas práticas na vida das pessoas. Como a gente imagina que eles não erram, decisões injustas acabam não sendo corrigidas. O caso mais conhecido é o que virou documentário na Netflix sobre reconhecimento facial.

Os sistemas aprendem com o banco de dados que é fornecido a eles. A maioria dos programadores é de homens brancos, portanto a precisão nesse segmento da população é maior. Há erros em mulheres, negros e maior ainda em mulheres negras. Isso prejudica atos corriqueiros da vida de muita gente.

Outro caso famoso é o apontado pelo fundador da Apple, Steve Wozniak. Ele e a mulher são casados em comunhão de bens e têm o mesmo patrimônio. Ambos abriram conta em um banco de bilionários. Os cartões e o limite dela vieram menores sem nenhuma justificativa.

Eles pesquisaram e verificaram que o mesmo acontecia com várias mulheres. Era um vício do algoritmo. Na vida de uma bilionária talvez não faça tanta diferença. Na vida de uma mulher que depende daquele dinheiro para fechar o mês pode ser algo bastante grave.

Ninguém determinou que o algoritmo desse menos crédito a mulheres. A forma como o preconceito se expressa é muito mais complexa. O algoritmo aplicado nesse tipo de política precisa expressar a sociedade que queremos mas acaba espelhando a sociedade que somos.

Trocando em miúdos, o computador recebe os exemplos do tipo de cliente que tem determinado volume de crédito. É realidade que o sexo masculino hoje em dia tem essa predominância. Se não houver uma ressalva na programação, o computador pode entender que o sexo é um critério para definir o crédito. 

Ocorre que este é um dos direitos neurais mais bem protegidos hoje em dia. Parece assustador, mas não é. Se passamos a enxergar o problema e damos a ele a atenção que merece, as soluções começam a aparecer. 

A Neurorights Foundation acaba de lançar um relatório de acompanhamento de respeito aos Direitos Neurais em todo o mundo, principalmente no nível das legislações internacionais. Sabe qual é o direito menos protegido? À identidade. Talvez ele nos pareça tão seguro que ainda não nos demos conta do risco.

Há alguns meses, fiz um longo artigo para o Instituto Montese falando detalhadamente sobre o que são e quais são os cinco Direitos Neurais:

  1. Direito à identidade, a habilidade de controlar a própria integridade física e mental.
  2. Direito de ação, ou a liberdade de pensamento e vontade para escolher as próprias ações.
  3. Direito à privacidade mental, a habilidade de manter seus pensamentos protegidos contra a revelação a quem quer que seja.
  4. Direito a acesso justo a reforço mental, garantia de que o acesso aos benefícios das melhorias da capacidade mental e sensorial por meio da neurotecnologia sejam distribuídos de maneira justa entre a população.
  5. Direito à proteção de vieses dos algoritmos, a habilidade para garantir que as tecnologias não implementem preconceitos no cérebro de quem as utiliza.

A questão do Direito à Identidade na era digital faz parte da ficção científica dos anos 1990. Na época, fiquei profundamente marcada pelo filme “A Rede”, estrelado por Sandra Bullock.

Ela interpretava uma programadora que recebia um disquete via correio, enviado por um amigo antes de morrer. O material revelava uma grande conspiração para apagar a identidade de pessoas. Se a pessoa não existisse mais no universo virtual, não poderia mais provar que estava viva.

Naquela época, era algo completamente fora de cogitação. Mas hoje não é. Imagine que sumissem todos os dados digitais do mundo, o que sobraria dos seus documentos? Nossos arquivos profissionais, pessoais, contas, comprovantes de pagamentos, declarações de impostos, propriedade, assinaturas e até processos judiciais estão armazenados de forma digital.

E se os documentos não sumissem, mas a autoria fosse trocada? Seria uma confusão sem precedentes. Mas, se acontecesse com todo mundo ao mesmo tempo, o prejuízo seria menor individualmente. Sim, acredite.

Com todos passando pelo mesmo problema, haveria mais compreensão sobre o evento. Mas imagine que somente uns poucos indivíduos passassem por isso. Quem iria acreditar? Eles estariam sujeitos a realmente perder suas identidades e não teriam como provar.

Esse é o drama do filme, que há quase duas décadas me faz imprimir uma papelada que parece inútil. Continuarei imprimindo enquanto esse filme permanecer na minha cabeça. E, evidentemente, não conto como a protagonista solucionou o drama.

A grande questão é como nós solucionaremos este problema e a primeira ideia é a definição de protocolos digitais. Justamente aí é que reside o erro. Como assim? Explico.

Por que os vieses surgidos com algoritmos são problemas que a humanidade consegue enfrentar com mais facilidade do que ameaças à identidade? Porque eles surgem só com a realidade digital.

Quando a solução para um problema digital está na área digital, ela é mais simples porque mexemos em algo mais novo e mais óbvio. 

Algoritmos que são aplicados em políticas públicas ou privadas são relativamente recentes. Se corrigir a programação conserta essas políticas, problema resolvido. Com a violação ao direito à identidade não é tão simples, infelizmente.

Antes da realidade digital, não havia tantos riscos com relação à identidade. O que poderia apagar a identidade de uma pessoa? Eram hipóteses absolutamente remotas, fantasiosas ou muitíssimo trabalhosas, feitas para casos específicos. 

Isso levou a uma realidade em que não foi necessário definir legalmente com precisão o que é identidade. É por isso que esse direito fica fragilizado na era digital. Como não existe uma definição precisa para ele, entra num limbo.

Vamos a alguns exemplos dados pela Neurorights Foundation. Um dos principais Direitos Neurais é o direito à consciência. Para nós parece algo bem claro. Tente definir objetivamente. Não é tão fácil.

Ocorre que isso jamais foi feito. Nos protocolos internacionais que falam de direitos individuais e individualidade não temos nada que defina objetivamente o que é a consciência. Quando não havia instrumentos que manipulassem a consciência humana, não parecia necessário. Agora há.

O que é a sua identidade? Não é o seu RG nem os seus outros documentos, é algo bem mais complexo e profundo. E todos nós temos direito a tudo isso, que nada seja violado e que tenhamos nosso sigilo de consciência protegido.

Como fazer isso num mundo em que há ferramentas de violação de sigilo de identidade e consciência mas não há definições legais do que são identidade e consciência?

Passemos a algo ainda mais delicado, as crianças, que são seres humanos em formação e dotados de dignidade e consciência. O que seria a identidade e a formação da identidade protegidas legalmente? Precisamos definir, a tecnologia não para.

Em países como Rússia e China as definições já estão feitas pelos governos. Os dados pertencem ao Estado, não aos indivíduos. Você pode concordar com a decisão ou discordar dela, mas foi tomada.

Nas grandes democracias ocidentais há um vácuo perigoso. Em tese, os dados pertencem aos cidadãos. Não há, no entanto, nenhuma garantia de posse desses dados e nenhuma penalidade para a tomada deles.

Verdade seja dita, o problema é que não existe sequer a definição do que são exatamente esses dados. Isso complica demais o cenário.

Parece razoável imaginar o que seja a sua identidade e o que significa invadir a sua identidade. Ocorre que não existe essa definição, então as brechas são infinitas.

Uma das principais preocupações da Neurorights Foundation já se converteu em um processo gigantesco contra o Google no Reino Unido sobre dados de saúde. Quanto dos dados que você coloca em aplicativos de saúde são sigilosos e quanto daquilo pode, por exemplo, ser vendido para o seu seguro de saúde?

Imagine que você baixe um aplicativo que mede quantos passos você dá por dia. Ou até mesmo um aplicativo que controle sua pressão arterial. Não há regras claras sobre o que pode ser compartilhado ou não. 

Você aceita termos de uso do aplicativo. São aquelas letras pequenas em que a gente sempre digita sim sem ler. De repente, o aplicativo some, você não acha mais, esquece do assunto, vida que segue.

Um dia você vai fazer um seguro e aquela empresa comprou todos os dados do aplicativo. Por causa daqueles dados você tem uma recusa ou terá de pagar um preço muito superior ao que seria o preço padrão para você. Isso é justo ou é uma violação?

Em tese é uma violação. Na prática, ainda não sabemos. Muitas pessoas já enfrentam esse problema na vida real e cada uma tem de lutar por si, não há soluções prontas.

A tecnologia já avançou. O mundo que imaginamos ser da ficção científica já chegou, mas a regulamentação não acompanhou essa velocidade.

A tentativa de acompanhar foi falha. Ainda tentamos regular os novos dispositivos, novas tecnologias digitais e novas invenções. É um erro monumental.

Definir com mais precisão os direitos e valores humanos que precisamos proteger nunca foi tão urgente. A Neurorights Foundation advoga que a ONU tome a dianteira no processo. 

Muitas empresas de tecnologia têm feito sua parte adotando princípios éticos, mas eles são descentralizados e voltados para os negócios de cada uma delas, não para princípios universais.

“Em última análise, os tratados internacionais de direitos humanos existentes estão atualmente despreparados para proteger Direitos Neurais. No entanto, conforme descrito em detalhes em nossos achados, os rápidos avanços na neurotecnologia não são mais ficção científica – são ciência. É urgente que a ONU desempenhe um papel de liderança globalmente para abraçar essas inovações emocionantes, protegendo os direitos humanos e garantindo a ética no desenvolvimento da neurotecnologia”, prega a Neurorights Foundation.

O mundo todo vive, enquanto isso, uma política polarizada de forma tóxica, inclusive porque os governos são incapazes de proteger os Direitos Neurais. Vamos conseguir acordar a tempo? Espero que sim.

Quando a liberdade depende da capacidade de reação a um ataque ramsomware

Quando a liberdade depende da capacidade de reação a um ataque ramsomware

Desde que eu soube da existência do ramsomware, esse tipo de crime dominou minha atenção. Não estamos apenas diante de mais um desdobramento da criatividade criminal. Aqui falamos da possibilidade do mundo criminal realmente desequilibrar os poderes estabelecidos e da sociedade civil.

Ramsomware é o sequestro de dados e impedimento do funcionamento de um sistema feito por hackers. Ano passado, fiz um artigo para o Instituto Montese explorando como o equilíbrio entre grandes potências é afetado por essa modalidade criminosa.

Neste artigo, enumero diversos casos ocorridos no mundo, inclusive vários aqui no Brasil. O resgate é pedido em criptomoedas e, no começo, obviamente ninguém quer pagar.

O que garante que o sistema não foi completamente destruído e os hackers vão sumir com o dinheiro? Desde que o primeiro resolveu pagar, temos visto um padrão. Os hackers realmente devolvem o acesso completo a todos os dados. 

Eles poderiam ter muito poder e fazer muito dinheiro retendo os dados e vendendo pouco a pouco, por meio de chantagem. Por alguma razão, não foi essa a escolha. Acabaram montando uma forma de empreendimento criminoso que movimenta bilhões anualmente.

Diversas empresas brasileiras listadas na B3 já tiveram de ficar fora das operações de mercado devido a ataques ramsomware. Está mais perto do que imaginamos. Um número incrível de pequenas e médias empresas relata ter sido vítima dos hackers. Mas elas pagam e o problema some.

O FBI montou uma força especial contra sequestro de dados. Até agora, só se conseguiu recuperar dinheiro de uma das operações, foram milhões de uma empresa privada. Criminosos envolvidos em um punhado de operações foram presos pelo mundo.

O problema é que a criminalidade e a tecnologia têm evoluído muito mais rápido que a capacidade institucional de conter os ataques. 

Isso acontece justamente no momento em que a realidade da tecnologia está mudando o jogo do poder entre os países. O mundo interligado pela internet tem uma dinâmica global, atravessa fronteiras sem apresentar passaporte. Nossas regulamentações são feitas na lógica da soberania nacional. Ainda não encontramos uma equação para regrar o que está na internet.

A tecnologia também muda o equilíbrio de poder entre os países. Você provavelmente lembra da briga do Telegram com o Judiciário do Brasil. Ela é um caso interessantíssimo da nova dinâmica de poder na era da internet.

O Brasil é um país de dimensões continentais com mais de 200 milhões de habitantes e recursos naturais invejáveis. O Telegram vem da Rússia, também um país continental com recursos naturais essenciais para o funcionamento da indústria na Europa. Temos visto isso muito claramente agora com o drama do gás natural durante a invasão da Ucrânia.

Países com grandes territórios, reservas naturais importantes e população significativa sempre tiveram prevalência de poder. Isso até a era da internet.

Vladimir Putin exigiu do Telegram entrega de dados confidenciais dos usuários, tudo dentro das leis russas. Ocorre que isso seria prejudicial à competitividade mundial da empresa. O dono resolveu não ceder os dados.

Numa dinâmica analógica, a empresa estaria sem saída. Desobedecer uma grande potência significaria ficar fora do mercado. Mas a era digital vem com uma nova dinâmica, muito familiar para quem é fã de teoria dos jogos.

Agora, quem tem o poder de criar regras pode se equiparar a quem conquista o poder por tamanho de território, população e recursos. Basta garantir que os recursos privados fornecidos mundialmente não sejam afetados por regulações incômodas para a empresa.

O Telegram resolveu mudar sua sede para o minúsculo e poderoso universo dos Emirados Árabes Unidos. A sede foi colocada ali. O governo local garantiu as operações legalizadas da forma mais conveniente para o empreendedor.

Potências gigantescas como Rússia, China e Irã reagiram. O Telegram foi proibido nos três territórios, todos controlados por fortes ditaduras. 

Espere que já chegaremos ao ramsomware e liberdades individuais. Vamos prosseguir aqui pelos empreendimentos, legais ou legalizados em pequenos territórios.

Com a regra garantida e válida pelos Emirados Árabes Unidos, o Telegram continuou operando com o mesmo público de antes. Os serviços de inteligência do Irã já admitiram que a maioria da população usa o Telegram, mesmo que ele seja proibido.

A Rússia de Putin resolveu legalizar o Telegram de novo. Não era uma opção proibir, as pessoas efetivamente usavam o serviço. Melhor legalizar e não perder poder. O Partido Comunista Chinês já diz oficialmente que o Telegram é proibido, mas se for por VPN, então pode usar.

Obviamente pensamos no Telegram como algo legalizado, um serviço que não tem nada de criminoso. Mas, pelos olhos dos governos da Rússia, China e Irã, ele era criminoso.

Abrigado pelas regras do minúsculo território dos Emirados Árabes Unidos, ele passa a se impor e forçar uma legalização mesmo dentro de grandes potências ditatoriais. 

Imagine um serviço que, para a nossa lei e nossa moralidade, seja visto como criminoso. Sim, o ramsomware desfruta da mesma prerrogativa que o Telegram.

Se um único e minúsculo país permitir em seu marco legal que os sequestradores de dados possam operar legalmente, eles podem agir no mundo todo. 

Agora vamos a um passo além, um caso real que foi acompanhado de perto pelo site Giro Latino: quando criminosos inviabilizam um governo soberano de um país. Acaba de acontecer na Costa Rica.

No último dia 18 de abril, o país anunciou o sequestro de uma gigantesca base de dados do sistema tributário e do sistema aduaneiro. Foi como uma derrubada de peças de dominó. 

Em seguida, vários outros sistemas saíram do ar. Eram questões importantes, como a administração da previdência da Costa Rica e o Instituto Meteorológico Nacional. Todos os sistemas centrais para o funcionamento do governo central simplesmente sumiram.

O momento político não poderia ser mais crítico. O governo havia mudado de mãos justamente naquele momento. Carlos Alvarado, político de esquerda, perdeu as eleições para o direitista Rodrigo Chaves. Não houve grandes atritos entre os dois.

Alvarado logo reconheceu a vitória popular de Chaves e decidiu instaurar um governo de transição. Foi então que os dados simplesmente desapareceram e não havia o que fazer na tal da transição.

O sumiço dos dados foi atribuído ao grupo Conti, famoso conglomerado russo de ramsomware. A Rússia tem abrigado quadrilhas bilionárias que operam em diversos países. Eles não atacam alvos russos e, por outro lado, não enfrentam risco de extradição.

A chantagem com a Costa Rica extrapolou todos os níveis de deboche das gangues de ramsomware. Os criminosos ofereceram 35% de desconto no resgate se ele fosse pago até dia 23 de abril. 

Além disso, fizeram uma ameaça velada ao setor privado do país. “Prometemos não tocar no setor privado da Costa Rica, tratamos com respeito o empresário desse país e pedimos que convençam o Governo a nos pagar”, disse o grupo criminoso nas redes sociais.

A pequena Costa Rica ficou refém da crise mundial. O grupo de ramsomware que sequestrou os dados do país em plena transição democrática também anunciava apoio total a Vladimir Putin na invasão da Ucrânia.

Como reagir a uma situação dessas? Não há parâmetro diplomático que dê conta de tantas variáveis e tantas ameaças. 

Fosse um país com o tecido social esgarçado, os criminosos teriam mais poder que as autoridades estabelecidas, tanto a que sai quanto a que chega. 

A Costa Rica decidiu que não vai pagar. Agora os criminosos ameaçam revelar publicamente todos os dados sigilosos que estavam nos sistemas do governo. 

Além disso, invadiram os sistemas de inteligência de um país próximo, o Peru. Estamos definitivamente num novo patamar da atuação dos grupos criminosos de ramsomware.

Chegou um momento em que miraram pequenas nações e ameaçaram usurpar o poder político e institucional. Tentaram colocar o empresariado contra as instituições de seus países. 

A Costa Rica é o tipo de país pequeno que poderia ganhar poder usando sua soberania para garantir a operação global de grupos econômicos. Na prática, ela virou refém de um grupo que se ancora em uma grande potência para atacar o poder institucional de pequenas nações.

Não prosperou a aposta no divisionismo interno. Rodrigo Chaves será empossado no próximo dia 8 de maio, diante de uma das crises mais desafiadoras do governo da Costa Rica. Pelo menos não está refém de um grupo criminoso.

Ataques do tipo ramsomware não são feitiçaria, são tecnologia. Podem ser muito potentes, mas saber como reagir diante dos primeiros sintomas também é eficiente para proteger as vítimas. E é justamente neste ponto que está o problema. Impedir esses ataques não parece ser prioridade em muitos países e em muitas empresas.

Uma pesquisa feita nos Estados Unidos com médias e pequenas empresas mostra que 75% delas teriam de fechar caso sofressem um ataque ramsomware. Não estão preparadas para reagir e nem mesmo para estancar.

O mais preocupante é que 30% dessas empresas sequer têm alguma intenção de planejamento para blindagem contra esse tipo de ataque.

Cada vez mais nossas liberdades são garantidas por sistemas digitais. Toda nossa identificação e prestação de contas com as autoridades já estão na internet.

Há um filme de 1995, A Rede, que me marcou muito. É uma programadora representada por Sandra Bullock cuja identidade simplesmente some do sistema.

Se todas as identidades sumissem do sistema de computadores seria o caos. Mas todos nós estaríamos vivendo o mesmo drama e compreendendo as dificuldades de todos. Imagine se só a sua identidade sumisse em um sistema que funciona bem para todos. Ninguém nem iria acreditar na sua história.

Hoje é possível que um grupo criminoso tire um país do ar enquanto todos os outros funcionam normalmente. Quais seriam as consequências caso os demais países desconhecessem ou desacreditassem essa possibilidade?

Reagir a ataques ramsomware passa a ser um requisito básico para a manutenção das liberdades na era digital. Dados são o petróleo do século XXI, ouvimos dizer com frequência. Resta saber se estamos dispostos a proteger os dados tanto quanto brigamos pelo petróleo.

 

A pandemia e o contrato social: aprendemos a proteger as liberdades individuais?

Durante a pandemia, passamos por algo apelidado de “infodemia”, uma espécie de pandemia de informação maligna, conteúdos feitos para indignar e mexer com a saúde mental das pessoas. 

Houve muita gente que perdeu completamente a noção do que era real ou inventado, uma situação ainda mais desesperadora quando se está diante de um vírus mortal desafiando o mundo todo. 

Em toda infecção da história da humanidade houve boato, pressão econômica para evitar restrições, medo de novas soluções como as vacinas. Por que justo agora, no período mais evoluído, parecemos mais confusos que nunca com o que deveria ser mais fácil?

Antes da peste já vivíamos uma mudança de organização social, vinda da evolução tecnológica, que muda a forma de comunicação interpessoal, a credibilidade das instituições formais e o exercício do poder. Uma sociedade digital em suas fases iniciais é instável por excelência.

O tecido social foi rompido em forma de polarização tóxica em diversos países. Polarização tóxica é algo bem específico e profundamente diferente da oposição política aguerrida. 

Significa a existência de grupos que julgam a moralidade e a dignidade de um ser humano de acordo com suas crenças políticas. Dessa forma, não temos mais nações feitas de indivíduos com uma mesma identidade, direitos e liberdades.

Agora temos povos fraturados em pólos opostos que vão se fragmentando até os mais mínimos cacos, as chamadas bolhas. A divergência e a polarização não se dão por opinião ou oposição, mas pelo julgamento emocional e moral.

A lógica é de que o meu grupo é intrinsecamente bom e o outro é intrinsecamente ruim. Todas as pessoas que sejam parte do outro grupo e até as que não atacam o outro grupo têm uma agenda maléfica oculta. Por isso, é preciso não ter limites com essas pessoas, elas representam o mal.

Na política isso já é complicadíssimo. Avalie em decisões de Saúde Pública. Em um mundo ideal, essas decisões seriam ancoradas em ciência. Na realidade, acabaram arrebatadas pela enxurrada da polarização tóxica.

Se alguma personalidade progressista ligada à ciência dizia algo, precisava ser contraditada por conservadores. Se um conservador levantava um questionamento, não importa o quanto fosse pertinente, era carimbado de negacionista.

Não faz nenhum sentido, mas já estávamos numa polarização tóxica e entramos num processo dramático envolvendo uma doença mortal e desconhecida.

Como é natural do método científico, o começo da pandemia era de muitas perguntas e pouquíssimas respostas. Tive minha saúde mental beneficiada pela experiência com a erradicação da pólio em Angola em 2011. Assumi que, durante um tempo, simplesmente não saberíamos e teríamos de nos resguardar até descobrir o que fazer.

Tínhamos também um problema de cálculo de probabilidades, as individuais contra as coletivas. O coronavírus não era, como não é, uma doença com alta taxa de letalidade individual. Mas a velocidade de propagação fazia com que ele inviabilizasse todos os sistemas hospitalares.

É daí que vinha o caos e não só para as vítimas da pandemia. A teoria da “imunidade de rebanho”, tratada como coisa de negacionista chapéu de alumínio, poderia ser cogitada devido à baixa letalidade da doença. 

O problema é que, se todo mundo pegasse ao mesmo tempo, as pessoas morreriam não só de coronavírus, mas de falta de atendimento em tudo, até em parto e acidente de trânsito. No início nem dos doentes do coronavírus os hospitais davam conta porque ninguém sabia direito o que fazer.

Enquanto políticos e a imprensa entravam em debates apaixonados santificando uma hipótese de enfrentamento e demonizando outra, uma multidão trabalhou à exaustão e sem ser ouvida.

Antes da vacina já haviam sido encontrados protocolos de atendimento para maximizar a chance de vida dos casos mais graves, poucos na proporção dos contaminados e de um gigantismo assustador pelo ângulo das perdas humanas.

Vacinas foram sendo desenvolvidas, muitos pularam no barco sem pestanejar, outros ficaram apreensivos, como é natural numa situação dessas. Novamente começa um embate ideológico e moral que pouco ajudou no enfrentamento da pandemia. O vírus, quem diria, não estava nem aí para briga ideológica.

Hoje eu fui ao mercado sem máscara. Meu filho foi à escola sem máscara. Estamos os dois vacinados. Parece que esse pesadelo ocorreu em outra vida. Saberemos só daqui a algum tempo onde foram parar nossas cicatrizes que, graças a Deus, são apenas psicológicas.

Eu sempre fui favorável à autoridade absoluta dos agentes de Saúde Pública nessas questões. Na incerteza, são os que têm a expertise para decidir que política será melhor para o maior número de pessoas numa sociedade. 

Comecei a ter minhas dúvidas com a história do passaporte da vacina. Fazia sentido quando imaginávamos que, uma vez vacinada, a pessoa não transmite a doença. Ou seja, atestado de vacina significa que aquela pessoa não contamina as demais.

Nessa situação, obviamente é muito razoável que cada um faça sua cota de sacrifício pessoal da liberdade para beneficiar o direito à vida e saúde da sociedade. Daí descobriu-se que vacinados transmitem a doença. O passaporte continuou. Comecei a desconfiar.

Mas o caso é que eu sou leiga. Trabalhei o suficiente em combate a epidemia para ter a ideia exata do quanto desconheço. E o tal passaporte não me afeta. Não tenho restrições médicas para a vacina, estou vacinada, tenho o passaporte. Minha vida não muda em nada.

Nos últimos meses comecei a ver notícias de gente desistindo de empregos com concurso no serviço público por não apresentar o passaporte vacinal. Uma deputada me mostrou casos reais de pessoas que não podem tomar nem essa nem nenhuma outra vacina, apresentaram todos os laudos médicos e um burocrata decidiu que não iria aceitar. Pronto, caos na vida profissional. 

Não é uma decisão de Saúde Pública que tenha o objetivo no lugar certo: a melhor política para o melhor número de pessoas. É uma decisão que mostra o foco em uma única doença sem levar em conta as outras.

Durante um período curto, numa emergência em que não se sabe nada, com o caos e a tragédia dos corpos se acumulando nas cidades, medidas drásticas são justificáveis. Mas dois anos depois, com a maioria da população vacinada?

Falo de apenas um ponto específico porque foi este o que me chamou a atenção. Quando a nossa liberdade não é violada numa situação real, fica difícil enxergar a possível quebra do contrato social. Isso para mim, não para quem entende de Saúde Pública.

Diversos especialistas no controle de inúmeras outras doenças – sejam virais, autoimunes, cardiovasculares, tipos de câncer ou outras que demandam tratamento contínuo – têm alertado para a necessidade de colocar a Saúde Pública em primeiro lugar.

O mantra de zerar mortes por coronavírus tomou o lugar de fazer o melhor para salvar o maior número de vidas e dar ao maior número de pessoas a melhor qualidade de vida. 

O contrato social da Saúde Pública é isso. Abrimos mão de parte da nossa liberdade e ficamos sob a autoridade de especialistas. Eles vão decidir que medidas são necessárias para dar a melhor situação possível à maioria das pessoas. 

Diante dos acalorados debates diários na imprensa e nas redes sociais, parece que o foco ficou apenas em zerar mortes por coronavírus. Se for possível, seria um sonho, uma bênção.

Mas aparentemente essa possibilidade implica não evitar mortes evitáveis por várias outras doenças. Os limites impostos às pessoas acabam prejudicando tanto os tratamentos quanto a qualidade de vida. 

Esses dias, o professor de política científica da prestigiosa Universidade de Epidemiologia e Bioestatística de São Francisco, Vinay Prasad, disparou que a Saúde Pública descumpriu o contrato social e precisa de novos limites.

“Ela (a Saúde Pública) não deve culpar os juízes por tirar seu poder. Ela provou que não merecia o poder que recebeu”.

Gritar que “a ciência está certa” ou que “precisamos seguir a ciência” virou um mantra. Só que muitas vezes a ciência nem tinha provado nada e nem as pessoas seguiam a ciência.

Indivíduos podem decidir não seguir a ciência porque nem só de racionalidade é feita a experiência humana. Órgãos de imprensa podem decidir defender a ciência numa página e publicar horóscopo e previsão de videntes na outra. Autoridades de Saúde Pública têm o dever de implementar só o que a ciência realmente recomenda.

Aí temos um problema. A ciência é um método que inclui questionar, testar estratégias, rever erros, voltar atrás, tentar outras estratégias. Tudo isso validando opiniões diferentes e levando em conta que todos nós somos humanos e temos vieses. Numa realidade de polarização tóxica, como fazer isso? Não foi feito.

Vinay Prasad diz que autoridades de Saúde Pública devem ter o poder de aplicar as regras desde que tenham responsabilidade suficiente para testar se elas realmente funcionam. Voltemos ao óbvio: quem testou se o passaporte de vacina funciona?

Para uma coisa ele funciona, regular estoques. Quando você impõe restrições a quem não toma a vacina, existe mais “incentivo” para que as pessoas apressadamente deixem de lado questionamentos. O escalonamento das vacinas tende a ser mais organizado e as perdas serão menores.

Mas tem algum sentido que autoridades de Saúde Pública destituam autoridades de outras áreas com base nessa regra? Se ela valesse para preservar vidas, sim. Mas, sendo que não valem, já que vacinados também contaminam, é uma regra justa?

Vamos às máscaras. Desde o início houve polêmica, com gente usando máscara na cabeça, máscara de carnaval, apelidando de focinheira, enfim… 

Eu usei todo tipo de máscara e descobri, por amigos que trabalham diretamente com os dados, que meu sacrifício foi em vão durante boa parte da pandemia. O que me ajudou foi a sorte, não a máscara de pano, que nunca funcionou de verdade.

Comprei as máscaras que funcionavam, mais caras. Era assustador que só alguns países distribuíssem o item para quem não tinha como comprar. Distribuí para conhecidos que não tinham como comprar, mesmo sabendo que é um grão de areia no oceano.  

Ficava apavorada quando exigiam passaporte vacinal em vez de teste de coronavírus. Aí que eu botava aquela máscara super difícil de achar que veda até espíritos. Eu não quero saber se a pessoa tomou vacina ou não, problema dela. O que me interessa é se tem possibilidade de me passar doença. Depois soubemos que nem isso é 100% garantido.

Estamos com uma geração de crianças que passou dois anos trancada em casa fazendo aulas online. Qual será o preço disso? Pergunto porque realmente não sei. Se soubesse, seria possível compreender o cálculo custo-efetividade de uma medida tão drástica. Mas ele foi feito só com o fígado.

Um ponto levantado por Vinay Prasad que me entristece particularmente é o das visitas hospitalares. Tenho amigos que não se despediram dos pais ou dos filhos. Lembro de uma reportagem sobre um rapaz que escalou as janelas de um hospital para dar o último aceno à mãe doente. 

Num determinado momento, houve proibições de comunicação entre pessoas internadas e suas famílias via celular. Entendo até que houvesse sentido na organização dos trabalhos, mas seria uma medida de Saúde Pública? O direito da última despedida tem um impacto humano nos que vão e decisivo na vida dos que ficam.

E se essas políticas aparentemente cruéis salvaram vidas? Este é justamente o ponto. As mesmas autoridades que determinaram essas regras são as responsáveis por avaliar se elas funcionam e se realmente devem ser aplicadas da forma como foram desenhadas. Isso não foi feito.

Entramos num piloto automático em que qualquer questionamento era equiparado ao negacionismo científico mais estridente e oportunista. Para que os negacionistas não prevalecessem, era necessário que autoridades de Saúde Pública fossem inquestionáveis.

No curtíssimo prazo, politizar uma pandemia e xingar de negacionista quem questiona uma regra pode funcionar. Mas já no curto prazo é uma ameaça à autoridade dos agentes de Saúde Pública, ancorada em credibilidade e proporcionalidade.

O fato é que vivemos na sociedade digital que tem acesso a informações do mundo inteiro. Ainda nos debatemos na polarização tóxica e no esgarçamento do tecido social. Não fomos capazes de garantir regras justas e sensatas para a maioria, nos rendemos à gritaria.

A democracia tem um calcanhar de Aquiles, “a turbulência e fragilidade das paixões rebeldes”. O pensamento é de James Madison, um dos “founding fathers” e redator da constituição dos Estados Unidos.

Quando as paixões rebeldes têm o sinal verde da polarização tóxica e da fragmentação das sociedades, as paixões rebeldes ficam ainda mais turbulentas. Dizer que estamos ao lado da ciência e contra os negacionistas é um trunfo social, ainda que não seja verdade. Muitos usaram.

A questão é como regrar um mundo que já vive nessa lógica passional garantindo as liberdades individuais. Vinay Prasad tem uma proposta bem concreta para a área da qual entende, Saúde Pública.

Seria necessário construir uma nova espécie de “Bill of Rigths” para os cidadãos nesse caso específico. Gritar que a ciência está certa ou fazer acusações moralistas de que alguém não se importa com mortes estaria fora do jogo de agora em diante.

A ideia não é um salve-se quem puder. Autoridades de Saúde Pública continuariam tendo o poder para implementar regras, mas ele viria necessariamente acompanhado da responsabilidade do acompanhamento.

Qualquer restrição implementada teria de ser cientificamente testada durante o período máximo de três meses. Caso não fosse possível demonstrar que uma restrição de liberdades individuais funciona no bem maior do maior número de pessoas, ela cairia.

Parece um detalhe, uma regra simples. Não é. É um limite claro entre o poder dado a autoridades de Saúde Pública e a responsabilidade dessas autoridades de prestar contas e respeitar liberdades individuais.

Deixa claro que ciência é um método, não um livro sagrado com uma coleção de axiomas. Evidencia a ideia de que não somos sociedades divididas entre o bem e o mal se digladiando internamente. Somos nações, grupos humanos feitos de seres humanos únicos e diferentes que pretendem abundância para todos.

Como já nos ensinou o Barão Acton, “o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Quanto mais a tecnologia e a ciência evoluem, mais precisamos entender de gente. A primeira regra para que o poder seja eficiente na garantia das liberdades individuais é o limite.

Direitos Neurais: a garantia de liberdades individuais na era das máquinas que lêem pensamentos

Sei que este artigo vai parecer, num primeiro olhar, ficção científica. Ocorre que já estamos vivendo nessa ficção científica. Desde a última semana está comprovado que as máquinas podem ler pensamentos.

Ultimamente todas as notícias parecem orbitar em torno de polêmicas, brigas e bizarrices. Exatamente por isso vale muito partilhar com vocês esta descoberta científica, que chega a ser emocionante.

A história é uma união de cientistas em diversos países com pesquisas avançadas sobre interface entre a neurologia humana e as máquinas.

O ponto de união é uma jovem família alemã. O pai, que hoje tem 36 anos, tem ELA, Esclerose Lateral Amiotrófica. É uma doença degenerativa progressiva que elimina todo controle de movimentos musculares. 

Ocorre que não elimina nem a consciência nem a cognição. É uma prisão solitária para a qual os cientistas tentam há muitos anos algum tipo de alívio. A doença ficou mundialmente conhecida no viral do desafio do balde de gelo na internet.

Em 2018, quando ainda movia os olhos, o pai entrou num grupo experimental da Universidade de Tübingen, na Alemanha. Eles trabalhavam com a comunicação computadorizada por meio dos olhos, que escolhiam frases e palavras para formar sentenças.

Houve uma possibilidade de avanço, essa totalmente inédita e de riscos incalculáveis. Talvez, por meio de um implante cerebral, fosse possível continuar escolhendo letras e formando frases mesmo depois de perder o movimento dos olhos.

O pai manifestou o desejo de correr o risco da cirurgia porque queria continuar se comunicando com a mulher e o filho. Ela assinou o termo de consentimento da cirurgia experimental, que foi feita com sucesso.

Conseguir fazer o equipamento funcionar já era uma outra questão completamente diferente. Em teoria, os eletrodos de 3,2 milímetros de diâmetro seriam capazes de ler as ondas cerebrais e gerar processos de escolhas de letras para formar frases.

Foram 3 meses inteiros testando diferentes métodos para fazer o sistema funcionar, sem sucesso. Então tentaram fazer o paciente controlar as próprias ondas cerebrais utilizando uma medida sonora.

Quando os disparos elétricos dos eletrodos nos neurônios eram mais rápidos, o som ficava alto. Quando os disparos elétricos eram lentos, o som ficava baixo. O paciente podia controlar a velocidade utilizando algum artifício de pensamento que ele próprio precisaria inventar.

Esse artifício seria uma forma de regular voluntariamente os impulsos elétricos dentro do cérebro para que eles interagissem com os eletrodos implantados. No primeiro dia, o paciente já conseguiu alterar o som.

Foram 12 dias de treinamento até que o paciente conseguisse deixar o som exatamente no tom em que ele desejava usando apenas recursos de controle dos impulsos cerebrais. É ciência, mas parece milagre.

O engenheiro biomédico Ujwal Chaudhary, que trabalha na ALS Voice, instituição benemérita alemã, relata o momento como se fosse ouvir música. O paciente conseguia em pouco menos de duas semanas, dominar o sistema de som controlando as próprias ondas cerebrais.

E como ele usaria isso para se comunicar? Mantendo o som alto ou baixo, ele ia dizendo sim ou não primeiro para um grupo de letras, depois para uma derivação do grupo, até chegar a letras individuais. Cada sim é uma letra que vai formar palavras até chegar numa sentença.

Foram 3 semanas até a primeira frase. O paciente estava desconfortável e pediu para ser reposicionado na cama. A esta altura, ele já havia perdido também o movimento dos olhos.

Durante um ano, ele produziu diversas frases. A velocidade, ainda mais nessa era da hipercomunicação, parece uma verdadeira tortura. Uma letra por minuto. Entre as primeiras frases estava “I love my cool son”. Emocionante.

O paciente conseguiu explicar à equipe que modulava o som quando tentava mexer os olhos. No entanto, não era um processo perfeito. O estudo durou 135 dias. Em 107 deles, o paciente conseguiu controlar o tom com 80% de acerto. Em apenas 44 dias ele conseguiu produzir frases inteligíveis.

Pensamentos e liberdades individuais

Até aqui, falei do milagre. Agora começo a provocar você sobre a delicadeza e profundidade do processo de proteção das liberdades individuais neste contexto.

O paciente em questão realmente estava empenhado em todo o processo, tinha vontade de manter a comunicação com a mulher e o filho mesmo após a perda de todos os movimentos. A liberdade de escolha dele foi respeitada.

Começa aí o primeiro dilema ético colocado pelos neurologistas: a impossibilidade de desistir no meio do caminho. Suponha que, por alguma razão, após o implante do chip ele não quisesse mais se submeter a tudo aquilo. 

Não tinha como parar, ele só iria conseguir comunicar isso à equipe se passasse por todo o processo de aprender a controlar o equipamento e formar frases.

Suponha que ele resolvesse enfrentar isso apenas para comunicar que quer interromper a experiência. Ele poderia fazer uma frase como “tirem esse implante”, certo? Sim. Mas daí a decisão correta seria tirar ou não?

Ainda é um dilema. Não é possível saber, por exemplo, se a sentença era apenas parte de outra que se perdeu por variáveis como ondas cerebrais não tão potentes para formar o início da frase. E se ele realmente tiver dito “por favor, nunca tirem esse implante”?

Outro ponto é como garantir que aquela leitura de ondas cerebrais se trata de uma manifestação de vontade. O paciente poderia estar dormindo e ter formulado isso em um sonho.

Daí entramos no dilema da privacidade. Suponha que, em um sonho, a máquina consiga ler segredos que, na verdade, ele não queria partilhar com as pessoas. Ainda não é claro como isso seria evitado.

Esse tipo específico de máquina de leitura cerebral ainda está muito longe de ser uma solução comercial. São necessárias centenas de horas de trabalho de dezenas de cientistas para fazer um modelo que só funciona em uma pessoa.

Além disso, o equipamento precisa ser calibrado diariamente de acordo com o progresso da interface com o paciente. É algo absurdamente caro para ser oferecido como solução para todos. Por enquanto.

Vamos a um exemplo de equipamento que hoje já é utilizado por mais pessoas, o membro eletrônico. Quem perde um braço ou uma perna pode ter a chance de utilizar uma prótese controlada por um implante cerebral.

Suponha que um paciente tenha conseguido essa chance e esteja no processo de treinamento do uso do braço eletrônico. É algo complexo e que leva algum tempo. O implante lê as ondas elétricas do cérebro e converte as decisões em movimentos do braço, da mão e dos dedos.

O paciente está muito feliz com a possibilidade de usar o braço eletrônico, mas não suporta uma pessoa da equipe que o atende no treinamento. Não há nenhuma razão, ele simplesmente não suporta a pessoa. 

Caso não queira mais estar no mesmo ambiente que a pessoa, o progresso do tratamento será comprometido. É um preço alto demais a pagar por uma bobagem. Ele respira fundo e segue em frente no seu objetivo.

Vez ou outra, quando a pessoa fala com ele, fantasia que tampa a boca com a mão para não ter mais de ouvir a voz irritante. Respira fundo de novo e prossegue no tratamento, sabe que uma hora ele acaba. Um dia, o braço eletrônico realmente ataca a pessoa. De quem é a culpa? Qual seria a solução?

É aí que entra o conceito de Direitos Neurais. Proteger as liberdades individuais exige uma série de regras no campo na neurotecnologia e da Inteligência Artificial.

Nesse caso específico do braço eletrônico, o implante cerebral precisa, de alguma forma, fazer a distinção entre o que são pensamentos e o que são decisões tomadas pela pessoa.

Direitos Neurais

Este exemplo do braço eletrônico é parte da publicação “Quatro prioridades éticas em neurotecnologia e Inteligência Artificial”, assinada em conjunto por diversos cientistas.

“Estamos no caminho para um mundo em que será possível decodificar os processos mentais das pessoas e manipular diretamente os mecanismos cerebrais subjacentes às suas intenções, emoções e decisões; onde os indivíduos podem se comunicar com outros simplesmente pensando; e onde poderosos sistemas computacionais ligados diretamente aos cérebros das pessoas auxiliam em suas interações com o mundo de tal forma que suas habilidades mentais e físicas são bastante aprimoradas. Esses avanços podem revolucionar o tratamento de muitas doenças, desde lesão cerebral e paralisia até epilepsia e esquizofrenia, e transformar a experiência humana para melhor. Mas a tecnologia também pode exacerbar as desigualdades sociais e oferecer às corporações, hackers, governos ou qualquer outra pessoa novas maneiras de explorar e manipular as pessoas., diz o documento (grifo meu).

O estudo foi o embrião da iniciativa Neurorights, da Universidade de Columbia, capitaneada pelo neurocientista Rafael Yuste. A primeira ideia é a de colocar na Declaração Universal dos Direitos Humanos cinco Direitos Neurais:

  1. Direito à identidade, a habilidade de controlar a própria integridade física e mental.
  2. Direito de ação, ou a liberdade de pensamento e vontade para escolher as próprias ações.
  3. Direito à privacidade mental, a habilidade de manter seus pensamentos protegidos contra a revelação a quem quer que seja.
  4. Direito a acesso justo a reforço mental, garantia de que o acesso aos benefícios das melhorias da capacidade mental e sensorial por meio da neurotecnologia sejam distribuídos de maneira justa entre a população.
  5. Direito à proteção de vieses dos algoritmos, a habilidade para garantir que as tecnologias não implementem preconceitos no cérebro de quem as utiliza.

Na mentalidade do Estado-babá, isso funcionaria deixando a tecnologia se desenvolver livremente e apelando ao Poder Judiciário quando houvesse alguma infração de direitos.

Estamos acostumados ao conceito de lei que pega e lei que não pega. Mas há como pavimentar um caminho ao respeito de alguns princípios. Ele foi tentado agora no processo da nova Constituição do Chile, a primeira do mundo a ter os Direitos Neurais.

Em conjunto com a elaboração da legislação, foi feito um treinamento de todos os que trabalham com neurotecnologia e inteligência artificial. Todas essas profissões passam a ter um código de princípios e um Juramento Tecnocrático, feito à semelhança do Juramento de Hipócrates.

O projeto foi conduzido pela Neurorights Foundation junto com a Universidade Católica do Chile, a Universidad do Desenvolvimento, Xabi Uribe-Etxebarria – da gigante de Inteligência Artificial Sherpa -, a IBM e o Facebook. 

Os empregados dessas empresas passarão pelo treinamento e farão o juramento ético que, à semelhança do que fazem os médicos, ocorre em uma solenidade pública com a presença de amigos e familiares.

Os 7 princípios éticos básicos da neurotecnologia são:

  1. Não maleficência, ou seja, não há intenção de causar danos com a tecnologia aplicada.
  2. Beneficência, intenção de contribuir para o bem comum com o trabalho realizado
  3. Autonomia, que estabelece que nada pode ser feito sem o consentimento voluntário de quem intervém em determinada situação.
  4. Justiça. Busca garantir que a aplicação da neurotecnologia gere resultados justos e imparciais, evitando, por exemplo, vieses algorítmicos.
  5. Dignidade. Todas as pessoas devem ser tratadas com respeito ter sua integridade garantida.
  6. Privacidade, que defende a remoção de todas as informações confidenciais e identificáveis ​​dos dados coletados pela tecnologia.
  7. Transparência, cujo objetivo é garantir que os algoritmos usados ​​sejam tão transparentes e corrigíveis quanto possível.

O juramento solene já foi elaborado. É o seguinte:

“Em todos os aspectos do meu trabalho, assegurarei que meu conhecimento não seja usado para prejudicar as pessoas; garantirei que meu conhecimento seja usado para o benefício dos usuários; vou buscar consentimento e respeitar a vontade daqueles que confiaram em mim; maximizarei a equidade dos resultados, evitando qualquer discriminação ou promoção injusta de certas pessoas em detrimento de outras; vou me certificar de respeitar a dignidade dos usuários, protegendo seus direitos humanos; não violarei a privacidade de informações confidenciais de indivíduos; vou maximizar a transparência dos algoritmos que gerar e usar.

Eu faço este juramento livremente, em minha honra, e assumo qualquer responsabilidade caso eu tenha de quebrá-lo.”

Apelar à honra e responsabilidade individual será capaz de levar a ética ao universo digital e da Inteligência Artificial? É uma aposta e os resultados serão medidos.

O que definitivamente sabemos é que existe a necessidade de dar atenção a este tema. A tecnologia cada vez mais cria mecanismos capazes de controlar e manipular pessoas. Certamente haverá quem se interesse por eles e mercado para isso.

Os defensores das liberdades individuais e coletivas precisam estar atentos ao desenvolvimento tecnológico. Ele precisa ser, cada vez mais, centrado no ser humano.

O poder da Rússia no continente africano: conheça o Grupo Wagner

A resolução da ONU condenando a invasão Russa na Ucrânia rachou o continente africano. Nos demais continentes, a condenação foi quase unânime. Dos 54 países africanos, só 28 assinaram a resolução.

Ficar a favor é um pouco difícil. Dos 193 países-membros da ONU, só 5 apoiaram a Rússia nessa: a própria Rússia, Bielorrússia, Coreia do Norte, Síria e Eritreia, este último no chifre da África. 

A administração e as relações exteriores da Eritréia são diferentes das demais do continente. É uma ditadura totalitária resultante da união de diferentes sultanatos.

Para 16 países, a saída foi a abstenção. Optaram por ela: Argélia, Angola, Burundi, República Centro-Africana, República do Congo, Madagáscar, Mali, Moçambique, Namíbia, Senegal, África do Sul, Sudão do Sul, Sudão, Uganda, Tanzânia e Zimbabué.

Outros 9 países nem participaram da votação: Guiné-Bissau e Guiné Equatorial, além do Burkina Faso, Camarões, Etiópia, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Guiné Equatorial, Marrocos, Suazilândia e Togo.

Não é novidade a influência da China sobre o continente africano. O plano “One Belt One Road” expande transferência de tecnologia e incentivos econômicos em todo o continente. Mas o posicionamento com relação à Rússia intrigou muita gente.

A tendência de países democráticos é analisar a questão sob o ponto de vista ideológico. Os russos têm excelência em propaganda política, aprimorada na era digital. Também têm laços históricos com diversos países africanos, que foram ligados à União Soviética. Mas talvez aqui a questão do poder bélico e da inteligência militar tenha um papel ainda mais importante.

Analisar o continente africano como bloco monolítico é um erro. Falamos de 54 nações soberanas com suas particularidades e cada uma delas ainda com divisões muito próprias do poder local. Por isso resolvi escolher um único país, o Mali, para falar de uma poderosíssima arma russa: o Grupo Wagner.

Trata-se de um grupo paramilitar de mercenários com participação em diversas guerras recentes e que está atuando também na invasão da Ucrânia. Ele surge em 2014 mostrando ao mundo um novo tipo de exercício de poder internacional.

Ele faz parte do conglomerado de poder de Евге́ний Ви́кторович Приго́жин, Yevgeny Viktorovich Prigozhin, magnata russo muito próximo ao ditador Vladimir Putin. 

Com sanções internacionais por atuação ilegal e acusações criminais nos Estados Unidos, o oligarca comanda um império que cobre áreas muito sensíveis de poder. É dono do Wagner Group, de mercenários russos; da Glavset empresa de manipulação de internet com propaganda russa; e da Concord, dona de diversos restaurantes e cujo serviço de catering atende Putin. Trata-se de um voto de confiança muito significativo num país famoso por envenenar desafetos.

A estreia das operações do Grupo Wagner foi a guerra da Criméia, em 2014. Depois, os mercenários tiveram uma atuação muito destacada durante a guerra da Síria. O primeiro passo rumo ao continente africano foi na guerra civil do Sudão, para onde foram deslocados mercenários que atuavam na Criméia.

Neste conflito, o papel do Grupo Wagner é o que vai se consolidar como politicamente importante para a Rússia, o de tornar o poder estabelecido imune a golpes de Estado. Ele faz apenas o treinamento militar e das forças de segurança do Sudão, não tem atuação direta na guerra civil.

Vladimir Putin declara reiteradas vezes que o governo russo não tem nenhuma relação com o Grupo Wagner. É uma empresa privada que teria vínculo exclusivo com a mão invisível do mercado. A ação estratégica a favor dos interesses russos seria uma coincidência apenas.

Depois do Sudão, o Grupo Wagner atuou com sucesso na guerra da República Centro-Africana, na segunda Guerra Civil da Líbia, na revolução do Sudão, fez segurança na crise governamental da Venezuela de 2019, conteve o jihadismo islâmico em Moçambique e então entrou no Mali, o ponto que vamos detalhar aqui.

Falamos de governos absolutamente instáveis. A maioria dos países africanos era colônia de algum país europeu até meados da década de 1970. Houve inúmeras guerras civis e várias ditaduras se estabeleceram, mas muitas nações jamais alcançaram a estabilidade política.

É um país de colonização francesa e riquezas naturais imensuráveis. O auge do império Mali foi no ano de 1300 e o imperador Mansa Musa é até hoje tido como possivelmente a pessoa mais rica da história da humanidade, dada a impossibilidade de quantificar a riqueza dele.

A cultura é islâmica, muito ligada aos tuaregs, povo islâmico do deserto do Sahara. A universidade de Timbutku, formada por 3 mesquitas milenares (Sankore, Djinguereber e Sidi Yahya) é a mais antiga do mundo, fundada no ano de 989.

O Mali era uma das nações que controlava o comércio pela rota do Sahara. No final do século XIX, no movimento chamado de “Conquista da África”, os franceses dominaram o país. Na década de 1960, ele declarou independência em bloco com o Sudão, onde o Grupo Wagner tem uma atuação de sucesso.

Naquela mesma década, os dois países se separaram. O Mali teve uma longa ditadura de partido único até o golpe de Estado de 1991, quando passou a se denominar uma República Democrática. Até hoje a estabilidade política jamais foi alcançada.

Em 2012, os tuaregs tomaram a área norte do país e declararam a independência da região que denominaram Azawad. Dois meses depois, ocorreu um golpe de Estado no Mali. Os tuaregs entraram em conflito com outros grupos separatistas e a questão foi resolvida com a intervenção de tropas da França.

O Mali retomou o controle de Azawad e conseguiu promover eleições para presidente e para o congresso no ano de 2013. Dois anos depois começa uma guerra civil entre dois grupos étnicos no centro do país. 

O estopim é a falta de acesso a água e terras agricultáveis, problema que se agrava com a crise climática. Na região há terroristas ligados à al-Qaeda apoiando um dos lados. Mas também há um descontrole com relação à criminalidade comum que impede o estabelecimento da ordem.

Os dois grupos criam milícias paramilitares. Há rumores de que o governo oficial do Mali dá apoio à milícia que combate terroristas islâmicos. Seria uma continuação do conflito com os tuaregs no norte do país.

Em 2018 aconteceram eleições presidenciais e Ibrahim Boubacar Keïta foi eleito com 67% dos votos. Havia 24 candidatos concorrendo legalmente, referendados pela Suprema Corte. Imediatamente após a vitória, foi negociado um cessar-fogo.

No ano seguinte, os terroristas islâmicos voltaram a atacar. Desta vez mataram soldados no sul do país. O presidente disse que não aceitaria um golpe militar, conduziria o país até as eleições de 2020. Seria finalmente a estabilidade?

O pleito foi um desastre completo. O líder da oposição foi sequestrado durante as eleições e manifestações eclodiram em todo o país. Houve um motim militar que acabou instalando uma junta militar no poder, com a prisão do presidente e do primeiro-ministro.

Ibrahim Boubacar Keïta renunciou dizendo que era para evitar o derramamento de sangue. A junta militar se comprometeu a governar por 18 meses até fazer uma transição pacífica para o poder civil. Era o golpe militar. Desde 2020, já houve dois golpes de Estado.

Aqui no Brasil se diz que impeachment é golpe. Falamos de algo bem diferente. Líderes de governo são sequestrados e outras pessoas tomam o lugar deles. 

Durante todo o período, além dos conflitos entre diferentes facções políticas, existe também a pressão do terrorismo islâmico. Desde 2013, as forças de segurança da França estão no Mali em operações de contraterrorismo.

Quem são essas forças que conseguem depor governos e comandar um país? Há um ponto em comum entre todas, o treinamento com especialistas russos. Ocorre no Mali e em diversos outros países com instabilidade política.

Em setembro do ano passado, o ministro de relações exteriores do Mali viajou a Moscou para um encontro com o ministro de relações exteriores da Rússia. A imprensa internacional anunciou que estávamos na iminência de uma contratação do Grupo Wagner pelo governo do Mali.

O Grupo Wagner receberia US$ 10,8 milhões ao mês mais uma taxa de sucesso, paga em acesso às minas de diamante do país. O governo russo confirmou a visita mas negou a intermediação do acordo.

No final do ano passado, o Grupo Wagner chegou ao Mali. A União Europeia fez uma moção condenando o acordo. França, Canadá e Alemanha mantinham tropas na região atuando contra o terrorismo islâmico e eram contra a presença de mercenários russos.

O governo do Mali continuava negando a presença de mercenários russos em seu território até o início deste ano. Mas investigadores forenses digitais rastrearam páginas de propaganda anti-França e pró-Rússia, além de vaquinhas para financiar a presença do Grupo Wagner no Mali.

No mês passado, a França, Canadá e outros países da União Europeia anunciaram que iriam se retirar do território do Mali e passar pacificamente as operações de contraterrorismo às autoridades locais. Alegaram não haver mais condições políticas, operacionais e legais de continuar.

O governo do Mali confia mais na Rússia do que nas forças da União Europeia para defender seu país de golpes dos terroristas islâmicos. Também aposta no treinamento das forças de segurança locais para tornar as autoridades no poder blindadas contra golpes de Estado.

O caso da República Centro-Africana, que conseguiu manter sua soberania com a ajuda do Grupo Wagner e sem o apoio do ocidente tomou as redes sociais na região.

Se as forças que promovem golpes de Estado são treinadas na Rússia, talvez pareça racional recorrer a mercenários russos para aprender a impedir golpes de Estado.

Ocorre que aqui falamos de poder, não de liberdades individuais. O preço de manter a dominância sobre um território ou eliminar a ação de terroristas islâmicos é sacrificar as liberdades individuais de toda uma população.

Os países democráticos ainda não conseguiram desatar este nó. A Rússia, no entanto, parece bem à vontade em jogar as declarações sobre livre iniciativa para o mundo capitalista. Além disso, se mostra efetiva em conter as ameaças de terroristas islâmicos nos territórios de países africanos.

Quantas pessoas sacrificariam a própria liberdade por proteção? Não é possível quantificar. Mas é fato que estabelecer este tipo de lógica não avança nem as liberdades nem a democracia. Elas são, comprovadamente, a forma mais eficiente de entregar abundância aos mais diversos tipos de sociedades.

 

Rússia x Ucrânia: quais são os limites da guerra cibernética?

A invasão russa na Ucrânia é acompanhada de uma invasão de todo o espaço cibernético. Na imprensa do Brasil, o fenômeno é muitas vezes tratado como inédito, mas não é. Desinformação é uma das armas de guerra mais antigas e funciona.

Entre os relatos ancestrais, temos a “fake news” de que Marco Antônio havia colocado Cleópatra em seu testamento, o que entregaria Roma aos estrangeiros se ele morresse.

É possível alegar que este seria o primeiro conflito em que a desinformação se alastra de uma maneira nunca vista antes, já que vivemos a era da Cidadania Digital. Também não é. O primeiro foi na tomada da Criméia, a mesma região, em 2014.

A experiência foi documentada no livro “War in 140 characters”, de David Patrikarakos. Existe uma grande mudança entre guerras de desinformação antes e depois das redes sociais e da digitalização da vida prática dos cidadãos. Hoje não é preciso mais construir um sistema de desinformação, basta usar os sistemas de relacionamento social que viraram fonte de informação.

A Rússia tem uma das mais sofisticadas máquinas de propaganda oficial com uso das redes sociais ocidentais. O primeiro artigo que publiquei aqui no Instituto Montese era exatamente sobre este tema, um detalhamento de como tudo funciona. Não se trata de algo óbvio ou de tentar convencer as pessoas de mentiras, mas da criação de toda uma lógica de pensamento.

Outro ponto importante de exercício de poder na era digital é o controle de sistemas cibernéticos. Quem consegue interferir na rotina dos cidadãos de outros países acaba ganhando um poder gigantesco, que está sendo usado nessa guerra.

Em novembro do ano passado, fiz um artigo sobre Ramsomware, o crime de sequestro de dados que passou a preocupar governos no mundo todo. É uma atividade prolífica na Rússia e que ameaça o equilíbrio de poderes entre potências.

Imaginamos a guerra como algo sem limites porque as imagens nos levam a uma realidade muito cruel. Mas esses limites existem, por isso há crimes de guerra. O conceito é antigo, data da primeira Convenção de Haia em 1907.

As regras mais conhecidas são aquelas traçadas a partir de 1949 nas quatro Convenções de Genebra e em seu aditivo de 1977. Tanto Ucrânia quanto Rússia são signatárias desses acordos e, portanto, seus governos se sujeitam a essas regras.

O princípio mais conhecido é o da distinção entre civis e combatentes. Atacar deliberadamente a população civil é um crime de guerra. Infelizmente, ele se repete em diversos conflitos e é perpetrado por muitos países que assinaram a Convenção de Genebra.

No confronto físico é relativamente fácil avaliar o que são ou não excessos contra a população civil. Mas e no mundo digital? Quais regras se aplicam? Um país pode simplesmente tirar a internet de todos os cidadãos do território que for invadido? Pode invadir o sistema bancário e impedir civis de movimentar dinheiro? Já houve quem pensou nessas respostas.

Nós migramos boa parte de nossas rotinas para o cyberespaço sem perceber. A pandemia acelerou demais esse processo. Boa parte de nossas atividades cotidianas, aquelas de todo cidadão comum, são realizadas no mundo digital. Não falo aqui só de rede sociais.

Declaramos imposto de renda pela internet, assinamos documentos por via digital, movimentamos nossas economias pessoais pelo cyberespaço, administramos negócios em nuvem, compramos e vendemos pelas plataformas, estudamos nelas, guardamos nossos documentos pessoais nos servidores das Big Techs. 

Outro dia me lembraram que, há 10 anos, nem os celulares com internet tinham aplicativos. O Ipad surgiu só no final do ano de 2010, era lançamento para o Natal. Imagine sua vida hoje sem os aplicativos de mensagens, bancos, informação de trânsito, compras, agenda. 

Nossa preocupação foi aprender a parte técnica, como passar nossa rotina analógica para a dinâmica digital. Quem me acompanha sabe que não economizo ao apontar os riscos que essa nova dinâmica traz para as democracias e liberdades individuais.

Por outro lado, é obrigatório reconhecer que esse avanço tecnológico também trouxe ganhos monumentais para as liberdades individuais, o desenvolvimento pessoal, a vida profissional e a liberdade econômica. Aprendemos e adotamos a tecnologia porque ela melhora nossas vidas.

Enquanto o cidadão comum se ocupava disso, representantes governamentais do mundo todo já analisavam como essas tecnologias iriam interferir no equilíbrio de poderes no mundo. 

Meu amigo Anderson Godz, fundador da EdTech Go New, criou uma explicação que facilita muito nossa análise. Não temos mais Três Poderes, temos Seis Poderes. E aqui não falamos apenas da divisão do poder como conhecemos, mas da influência de novos poderes no exercício do poder tradicional e institucionalizado.

Para todos é muito claro que temos Executivo, Legislativo e Judiciário. A mídia é o Quarto Poder, conhecemos bem este conceito. As Big Techs, já chamadas de Empresas-Estado, seriam o Quinto Poder.

Trata-se do pequeno conjunto de empresas bilionárias, com um mercado próprio na área de tecnologia, das quais hoje dependem bilhões de cidadãos e a economia da maioria dos países. São empresas como Google, Facebook, Amazon, Apple e Microsoft.

O pulo do gato é compreender o Sexto Poder, aquele exercido pelos grupos de pressão que se formam e agem por meio dessas plataformas. Há pressões sociais, políticas e econômicas que antes dependiam de formar base social ou passar pela barreira do Quarto Poder, a mídia.

Agora, grupos e indivíduos que sabem navegar no mar revolto dos algoritmos das Big Techs conseguem exercer poder e mudar a forma como agem os Três Poderes tradicionais e até a mídia. A invasão da Ucrânia pela Rússia já traz exemplos práticos desse exercício de poder, que vemos no dia a dia.

A eleição presidencial no Brasil foi um exemplo clássico da chegada ao poder tradicional turbinada por grupos de pressão formados nas redes sociais. Passou a ser rotina ver na mídia como notícias “Fulano tuitou tal coisa” ou “A hashtag tal chegou aos trending topics”. O Quinto Poder e o Sexto Poder interferem na forma como os outros quatro são exercidos.

Há pelo menos 20 anos diversos conselhos da ONU debatem com governos e especialistas as ameaças potenciais que as novas tecnologias podem trazer à soberania dos países e aos Direitos Humanos. 

Desde 2004 há seis GGEs (Groups of Governmental Experts) trabalhando nas mais diversas questões de segurança cibernética, envolvendo experts internacionais e Estados-membros da ONU. O último concluiu seus trabalhos no ano passado.

A primeira resolução veio em 2015 e acompanha o raciocínio da Convenção de Genebra, que separa a população civil dos combatentes. Não existe uma proibição de ataques que afetem civis, existe o princípio da proporcionalidade. 

Aliás, há aqui um princípio para guardar com carinho. Proporção vem do latim ratio. É a mesma origem de racional e racionalidade. Ser racional tem uma relação íntima com ser proporcional. Para verificar se há igualdade de proporção, temos de comparar as razões.

Sei que o significado matemático é diferente, mas podemos fazer uma analogia com o significado dessas palavras na situação concreta. É proporcional e racional derrubar uma ponte ou interditar uma estrada usada por civis numa guerra? Depende do quanto ela é utilizada por combatentes inimigos e do risco que isso representa.

No universo cibernético, a mesma lógica é aplicada. Não se trata de bom senso, mas de regras acordadas por todos os países membros da ONU em diversas ocasiões, a primeira em 2015. A última foi em março do ano passado.

Foram criadas 11 normas objetivas às quais boa parte dos países membros se submeteram voluntariamente. Elas criam uma espinha dorsal do que nações soberanas devem ou não fazer no universo virtual, seja em tempos de guerra ou de paz. Os grifos são da própria ONU.

    1. Cooperação sobre segurança entre Estados.
    2. Considerar importante todo tipo de informação.
  • Prevenir uso malicioso de tecnologias cibernéticas dentro dos limites da soberania do Estado.
    1. Cooperar para combater o crime e o terrorismo.
    2. Respeitar os Direitos Humanos e a privacidade dos cidadãos.
  • Não causar danos a infraestruturas críticas.
    1. Proteger infraestruturas críticas.
    2. Responder a pedidos de ajuda.
    3. Garantir a segurança da cadeia produtiva.
    4.  Reportar as vulnerabilidades cibernéticas.
  • Não causar danos a equipes de resposta de emergências.

Se você está acompanhando as notícias sobre a guerra, provavelmente terá dificuldades para encontrar um princípio que ainda não tenha sido violado. Os relatos são invariavelmente estarrecedores.

Há ataques em sistemas bancários, torres de televisão e empresas de serviços públicos. Cidadãos que não tiveram a oportunidade de deixar suas casas agora transformadas em zonas de conflito pagam o preço altíssimo da violação de direitos nos espaços real e virtual.

Por outro lado, novos poderes e alternativas também surgem. Diante da ameaça ao funcionamento da internet na Ucrânia, decidiram cutucar um homem só, o bilionário Elon Musk. Questionaram por que, em vez de gritar nas redes sociais, ele não liberava internet via satélite de graça para os ucranianos. Ele liberou. 

É um novo poder para solucionar uma situação de guerra que não era possível antes que o cyberespaço tivesse tanta importância. As Big Techs resolveram interferir diretamente no conflito com sanções, derrubada de contas, posts e diminuição de alcance de postagens.

Há um deslocamento do eixo de poder. O que as nações pactuaram no ambiente institucional não foi cumprido, mas as consequências não estão chegando pela via institucional. Atores econômicos e da cadeia produtiva também são decisivos para os rumos de um conflito que preocupa o mundo.

No universo digital, esses agentes têm armas de guerra, as armas de informação e desinformação, antes exclusivas das nações 3’soberanas. 

Diante de arroubos imperialistas ou de conquista de territórios, os limites da guerra cibernética não existem. Pouco importa o que foi pactuado, aparentemente vale tudo. No entanto, a capacidade de resposta agora é imediata e vem de diversos agentes, não apenas os institucionais.

Vivemos o desafio de organizar o caos. O primeiro valor a ser sacrificado numa guerra é a verdade. As liberdades individuais vêm em seguida. A grande questão é o que seria infalível para garantir essas liberdades. Infelizmente, ainda não temos resposta.

 

Big Techs, soberania e liberdade: como resolver a equação?

Big Techs, soberania e liberdade: como resolver a equação?

Não temos mais Três Poderes, temos Seis Poderes. Executivo, Legislativo, Judiciário, Mídia, Big Techs e Grupos de Pressão Unidos nas Big Techs. A teoria não é minha, é do meu amigo Anderson Godz, fundador da edtech Go New. Mas eu fico repetindo em todo canto para vocês uma hora acharem que eu tive esse insight.

Parece algo muito abstrato e macro, longe da gente. Pela primeira vez na história da humanidade não é. As decisões tomadas dia a dia na relação íntima que temos com a tecnologia estão moldando uma nova estrutura de poder, em que temos dificuldade de enxergar a proteção das liberdades individuais.

Sou uma eterna otimista. Creio que, à medida em que desprogramamos nossa mente analógica e começamos a entender a nova dinâmica de poder, as soluções e caminhos irão surgir de quem já tem experiência em diversas áreas além da tecnologia.

Veja esse texto como parte do meu esforço para fazer com que você seja mais um cidadão a contribuir com a sua experiência pessoal para a defesa das liberdades individuais no mundo da digitalização e hiperconexão. Vou partir de casos concretos para provocar uma discussão e espero que você me ajude a evoluir nesses temas.

Começo com uma treta que dominou toda a imprensa, o YouTubber Monark, do Flow Podcast contra o YouTube. Vou ficar só nessa parte, embora saiba que a treta foi bem mais comprida. Também vou ficar nos fatos apenas.

Depois de defender que fosse legalizado um partido nazista no Brasil sem informar que Hitler só chegou ao poder pela aplicação dessa mesma tese de liberdade radical, o Flow Podcast voluntariamente tirou o vídeo do ar. Fez mais, tirou Monark da sociedade da empresa, que tem 10 podcasts e mais de 90 funcionários. 

O Ministério Público entrou em ação com providências legais. O Museu do Holocausto convidou Monark a fazer uma visita e entender a gravidade do que disse para milhões de pessoas entre um e outro whisky. Parlamentares e organizações da sociedade civil programaram eventos de conscientização sobre o Holocausto. Não podemos esquecer para não repetir.

Parece que foi um caso lapidar em que tanto as instituições quando a sociedade civil impuseram limites com ações objetivas e proporcionais, dentro de suas esferas de atuação. Mas a polarização criada pelas redes sociais nos dá uma eterna sensação de que “ninguém está fazendo nada” e “fulano continuará fazendo isso impunemente”. Pense quantas vezes você sentiu isso.

Provocar essa sensação é interessante para quem tem poder mas não instituído, ou seja, mídia, Big Techs e grupos de pressão. A institucionalidade que conhecemos não teria dado conta, então é necessário lançar mão de medidas urgentes e autoritárias, mas só desta vez.

Nas redes, o sentimento de que “ninguém está fazendo nada” se mistura com o schadenfreude, satisfação quando um adversário se dá mal. É a tempestade perfeita para fazer alguém abrir mão da própria liberdade sem perceber.

Dias depois de todas as medidas tomadas, muitos influencers continuavam faturando com o “ninguém fez nada, ele precisa ser punido”. O YouTube decidiu inventar uma punição inédita no mundo, que não está nem na lei brasileira nem nas regras de utilização da plataforma. O Monark – e não o canal onde houve a infração – não pode mais monetizar na plataforma.

Uma Big Tech tentar essa cartada não me surpreende, a surpresa é isso não ser percebido porque as pessoas ficam obcecadas em punir alguém e realmente achando que nada foi feito ainda. 

Exemplifico com a nossa mente analógica. Imagina se toda empresa que, direta ou indiretamente, contribuiu para aquela transmissão pudesse simplesmente determinar que aquele consumidor específico não pudesse mais usar seus produtos para aferir lucro. É o que o YouTube fez e a imprensa apoiou de forma maciça.

Então a empresa de energia elétrica poderia, diante de uma discordância com um cliente, impedir que ele usasse seus produtos para aferir lucro. Ele não seria cortado, poderia usar energia elétrica para sua vida pessoal. A companhia telefônica que providenciou a internet do episódio poderia fazer o mesmo. Onde iríamos parar?

A distorção aqui é de foco, causada pela polarização. As pessoas pensam no Monark porque é a treta da semana, não pensam em si, perdem o senso de sobrevivência. Avalie uma empresa alinhada a um governo autoritário. Ela poderia impedir as atividades econômicas de qualquer órgão de imprensa? A imprensa aplaudiu isso, a criação dessa brecha. Estamos em terreno pantanoso.

Quando a imprensa e intelectuais aplaudem um avanço sobre as liberdades individuais com justificativa moralista ou da exceção do caso, normalizam esse tipo de pensamento. Há quem diga que não temos tradição democrática no Brasil, por isso seria tão fácil enredar as pessoas dessa forma. 

Infelizmente, temos exemplos até na maior democracia do mundo, os Estados Unidos. Existe um esforço internacional monumental para decidir como lidar com o novo jogo de poder criado pela existência das Big Techs. As empresas querem evitar o máximo de regulação e tentam ter mais poder, algumas vezes mandam mais que o poder estabelecido.

Um caso emblemático é o do Telegram, que continua funcionando no Brasil e nem atendeu o então presidente do TSE, ministro Barroso. Em países onde as regras são claras e realmente cumpridas, eles respondem. Na mesma semana em que esnobou nossas autoridades, o Telegram se submeteu voluntariamente às regras criadas pelo governo alemão para a arena do debate digital.

 

Existe uma tendência de focar o debate na superfície. Monark deve ou não fazer um podcast? O Telegram deve ou não funcionar no Brasil? A questão é muito mais profunda.

Nossas instituições estão dando conta de proteger as liberdades individuais dos cidadãos brasileiros diante desses novos poderes? A opinião pública tem clareza de que precisamos ter especial cuidado com violação de liberdades em tempos de mudança como este?

Muitos já chamam as Big Techs de Empresas Estado. Efetivamente, têm mais poder que as instituições de diversos países do mundo. No caso do YouTube x Monark, houve algo bem interessante. A Big Tech diz ter tomado medidas para combater a ideia tóxica da liberdade radical, só que essas medidas são a prática da liberdade radical.

O que foi feito não tem nenhum respaldo legal, não havia previsibilidade desse tipo de medida nem na lei nem nas regras de uso da própria empresa, ela não se submeteu a nenhuma instituição brasileira para decidir e parece não haver quem se contraponha a essa força. Nem a imprensa livre que também é mediada pelo YouTube.

Pequenos precedentes criam hábitos, processos e formas de pensar. As Big Techs não são monstros, são gigantes financeiras que lutam para não se submeter ao poder institucional, ter liberdade radical em que ditam regras. O poder institucional ainda tenta entender como lidar com isso, já que são empresas globais e centenas de regras locais.

Uma forma eficiente de dobrar o poder institucional é ter mais poder sobre a vida dos cidadãos do que as instituições que ele elege. É o caso. Nenhuma instância governamental pode criar regras novas para punir um único indivíduo nem agir contra ele ao arrepio da lei. O YouTube efetivamente pode aqui no Brasil.

A nossa rotina é cada vez mais dependente de produtos das Big Techs e não falo apenas da parte psicológica ou do tal “vício” em internet e redes sociais. Lembra quando o Instagram e o WhatsApp caíram? Muita gente teve um impacto financeiro enorme porque suas atividades foram inviabilizadas.

A pandemia acelerou o uso do que estivesse à mão para buscar alternativas de organização de negócios e da vida. Muita gente demitida, por exemplo, montou lojas no Instagram e recebe por ali. Diversas empresas concentraram suas vendas em entregas e atendem via WhatsApp, até cobram por esses sistemas.

Os avanços tecnológicos são tão rápidos que não percebemos e é fato que resolvem problemas práticos das pessoas. O risco de aceitar tudo de forma acrítica está em não perceber avanços de poder sobre as liberdades fundamentais. Eles são sutis.

Um caso interessante é do fundador da New Discourses, James Lindsay, um crítico da cultura Woke e do Identitarismo (não confundir com pautas identitárias justas e que têm conexão com direitos reais das pessoas). 

Ele descobriu que havia um veto para que ele fosse citado por outros usuários do Instagram, sem que ele fosse avisado ou que houvesse qualquer regra prévia com esse tipo de sanção para usuários. Pode parecer uma bobagem, mas tem impacto em todo o sistema de acesso e buscas ao trabalho dele. É uma forma de moldar artificialmente um mercado específico.

Andy Ngo, autor do Best Seller Unmasked, teve sua conta congelada no Twitter por supostamente revelar dados privados de outros usuários. Ocorre que a situação não era essa, mas algo que beira o bizarro.

O jornalista independente revelou diversas histórias de violência e abusos cometidos em nome do movimento “Antifa”, que não é uma associação que exige inscrição. Qualquer um pode dizer que fez algo extremo por ser Antifa. Ele recebe diversas ameaças e uma delas veio de um email anônimo, que ele postou em sua conta do Twitter. Ele é que foi suspenso. O print do email apócrifo foi considerado revelar dados privados de usuários.

Também parece um pequeno detalhe, mas é uma interferência no direito de denúncia da sociedade civil. Já vivemos em um mundo em que “Fulano tuitou tal coisa” é manchete dos grandes jornais dos mais diversos países. Escolher, sem obedecer à lei e a nenhum critério lógico o que pode ser dito neste espaço digital distorce o noticiário e a percepção de realidade.

A ativista feminista Andreia Nobre listou uma infinidade de contas de outras ativistas que foram silenciadas. Aqui muita gente pode achar estranho, já que as plataformas têm fama de ser progressistas e fazem esse discurso. Existe atualmente um embate entre o feminismo e a militância trans em todo o mundo. 

Não se trata de um embate entre mulheres e pessoas trans nem entre quem milita por igualdade de gênero e inclusão de pessoas trans, é algo diferente. O grupo que eu chamo de “flanelinha de minoria” é que causa os problemas. 

O “flanelinha de minoria” é alguém que resolve cuidar de uma minoria específica e muitas vezes nem faz parte dela. Tal como o flanelinha, ele não quer saber se a minoria deseja ou não ser cuidada por ele, ele vai cuidar de qualquer jeito e a minoria que arque com os custos disso. 

As contas de feministas acabam suspensas principalmente em debates sobre banheiros unissex, transição de gênero em menores de idade e trans no esporte. Basta a denúncia em massa por um grupo para que uma conta seja suspensa, com ou sem razão. 

Na correria do dia a dia, a gente acaba até esquecendo que isso aconteceu, mas algo importante muda. Essa dinâmica de triagem do discurso público subverte os princípios democráticos. Passa a valer a lei do mais forte ou do mais violento. As liberdades individuais perdem proteção.

Como isso é feito de maneira sistemática, diariamente e numa velocidade incrível, perdemos o passo de como muda o jogo de poderes nas sociedades democráticas. As não democráticas já estabeleceram regras claras. São os Estados ditatoriais que controlam os cidadãos de acordo com suas regras, não empresas privadas.

O Partido Comunista Chinês, por exemplo, decidiu que essas Big Techs não operam em seu território. O Yahoo, admitido depois de revelar os dados de dois dissidentes que acabaram presos, resolveu sair ano passado. Não dava conta das novas exigências do governo. O Linkedin decidiu encerrar as operações depois do pedido de derrubar contas de quem trabalhasse falando de direitos humanos na China.

A Rússia, outra potência ditatorial, tem estratégia diferente. A bilionária máquina de propaganda russa manipula as redes com o tipo de propaganda política que interessa ao governo Putin. Meu primeiro artigo aqui no Instituto Montese foi um mergulho nessa dinâmica.

Outras ditaduras menores, como os Emirados Árabes Unidos, encontraram uma estratégia diferente. Usam a soberania para dar poderes ilimitados a Big Techs para operar à revelia da lei de outros países. É para lá que o Telegram se mudou quando o governo da Rússia, de onde é originário, exigiu revelação de dados de usuários.

O governo Putin reagiu duramente e proibiu o Telegram. Na prática, ninguém conseguiu impedir a rede de operar no próprio país. O Irã tentou, mas a inteligência iraniana já admitiu que 45 milhões de cidadãos, mais de metade do país, continua usando o aplicativo “proibido”. A Rússia acabou liberando de volta. 

No modelo de empresas que são vitais para outros ramos da economia, temos uma oportunidade de concentração de poder inédita para pequenos países, principalmente ditatoriais. Ao abrigar uma Big Tech e dar a ela liberdade ilimitada, exercem poder em países muito maiores.

Ditaduras tomam decisões de forma mais rápida que as democracias. Não quer dizer que tomem decisões melhores. É complicado decidir o jogo de poder entre soberania política e domínio econômico caso seja necessário levar em conta as liberdades individuais.

É nesse imbroglio que estamos. Preservar liberdades individuais tem como ponto central a vigilância para manter a liberdade de expressão e a liberdade econômica. Um exercício abusivo dessas duas liberdades pode manipular a opinião publicada e a opinião pública com argumentos moralistas e autoritários.

Casos flagrantes de avanços contra liberdades individuais, principalmente a manipulação do debate público, tendem a ser tratados como exceções em nome de um bem maior. 

Fulano fez um discurso de ódio perigoso, então foi absolutamente necessário aplicar a ele uma pena não prevista antes e completamente desproporcional, imposta por quem nem tem essa autoridade. Ao ler o texto, parece injustificável, mas é algo naturalizado no debate público polarizado e em tintas carregadas.

Qual seria a solução? Promover regulações apressadas e rígidas que praticamente criminalizam as Big Techs e as submetem a qualquer desejo de governos soberanos é uma tentação enorme. Mas não acredito que copiar o que as ditaduras fazem garantiria respeito às liberdades individuais dos cidadãos.

Ainda não existe um modelo pronto e acabado de como é possível preservar a soberania das nações, os direitos individuais e a liberdade econômica ao mesmo tempo nesse novo mundo. 

A Alemanha construiu um sistema que diversos governos democráticos observam de perto. É uma mistura entre órgão regulador, ação da sociedade civil e responsabilidade das Big Techs sobre o risco do próprio negócio. Em muitas partes do mundo, as plataformas são isentas de responsabilidade sobre ações dos criadores de conteúdo. Na Alemanha não.

Mas falamos de um país que tem condições objetivas de impor a lei e com um povo que tem noção dos próprios direitos. Além disso, o processo de superação das chagas do nazismo formou uma cultura especialmente atenta às tentativas autoritárias mais nefastas. 

Seria possível ter modelos tão eficientes nas demais democracias? Sinceramente, espero que sim. É preciso, no entanto, que as autoridades e os formadores de opinião tenham a humildade de aprender sobre a dinâmica do universo digital. 

Talvez essa mudança tecnológica também mude a dinâmica do poder institucional. Os países mais fortes não necessariamente seriam os maiores em território e em população, mas os que criem condições perfeitas de operação para gigantes econômicos. A mudança está em curso. Nossa questão é como garantir as liberdades individuais.

 

Uma vida inventada: como garantir a liberdade na economia do metaverso e dos games?

Outro dia um amigo me indicou um site de roupas absurdamente maravilhosas e extravagantes, elaborada por designers criativos de todo o mundo. Fiquei deslumbrada, mas imaginei que custassem uma pequena fortuna. Imaginem minha surpresa ao ver que custavam entre US$ 30 e US$ 40.

Enlouqueci. Já fui separando as preferidas e tentando ver se entregam no Brasil. É coisa que aparenta milhares de dólares e custa muito menos, uma barganha. Foi revirando as modalidades de entrega que entendi: é roupa para o metaverso.

Na hora já deu aquele frio na barriga. Afinal, já precisa até comprar roupa para ir ao metaverso e a gente ainda nem entendeu direito o que é. Na verdade, você já tem a experiência, só não associa o nome à pessoa.

O Facebook é talvez a melhor empresa de marketing que já houve. Ao mudar o nome para Meta e falar em Metaverso, evocando o elemento pop do filme do Homem Aranha, nos dá a impressão da chegada de algo totalmente novo e disruptivo. Não é assim, é uma evolução de muito do que já temos.

A definição técnica de Metaverso é um espaço livre e compartilhado de interação que une internet, realidade aumentada e inteligência artificial. Você já conhece algo muito semelhante: o mundo dos games, uma indústria que hoje é maior que a soma de Hollywood com Superbowl.

Há uma tendência de subestimar a indústria dos games, tratar como coisa de molecada. Mas estamos diante de uma ferramenta psicológica poderosíssima.

Os games surgiram entre as duas Grandes Guerras Mundiais para treinamento de soldados. Eram uma forma de dessensibilização. Combatentes da I Guerra relataram dificuldades em matar inimigos, viam ali a humanidade do outro. Os games treinam a mente para anular esse sentimento.

Há um filme na Netflix, Hejter,  https://www.netflix.com/br/title/81270667 que mostra o uso dessa realidade dos games, a realidade Metaverso, na radicalização política de pessoas. Pessoas com vulnerabilidades emocionais e de convivência podem recorrer ao universo fantástico dos games por conforto psicológico. No filme, elas acabam sendo treinadas para matar e realmente matam.

Depois de ler isso, pode parecer que precisamos eliminar imediatamente o Metaverso e os games. Muita calma. Se você tem filhos, deve ter observado como eles mantiveram a relação com os amigos por meio dos games durante a pandemia.

Já há pesquisas mostrando que a saúde mental das crianças que conseguiram, via games, ter vivências virtuais com outras crianças da mesma idade foi muito mais preservada nesse período.

Cito outro exemplo, vindo da Holanda. Alguns professores tiveram a ideia de usar o código aberto do jogo Roblox para montar aulas de História e Geografia. Em vez de aprender só nos livros, filmes e aulas presenciais, os alunos tinham experiências de imersão.

Na prática, eram montados “mundos” que fossem a experiência histórica ou a região geográfica sobre a qual eles iriam estudar. Em vez de ouvir falar, tinham uma experiência de imersão, como se tivessem vivendo aquilo. O resultado de aprendizado foi muito positivo.

Não há dúvidas de que estamos diante de uma nova forma de poder, uma nova arena em que as pessoas podem desenvolver seus sonhos e personalidades.

No master Novo Poder, da Go New, projeto do qual participei com os amigos Anderson Godz, Francisco Milagres e Salim Ismail, há um norte econômico para pensar o novo mundo. Passamos da economia da escassez para a economia da abundância.

O mercado de luxo, por exemplo, com o qual eu iniciei este artigo, é todo pautado na lógica da escassez. Por que um sapato custa US$ 5 mil? Porque é único, escasso, símbolo de status.

Hoje, diversas marcas de luxo têm opções para uso virtual. Parece loucura, mas existe. O mesmo sapato que uma celebridade de Hollywood pagou US$ 5 mil pode ser usado por você no Instagram por US$ 30.

Não é o Metaverso, mas é a mesma lógica. A celebridade milionária vai comprar o sapato e tirar as fotos. Você vai baixar um aplicativo e pagar US$ 30 para aplicar nas suas fotos com inteligência artificial.

Não é uma simples montagem, é um sistema patenteado em que seus seguidores realmente pensarão que você usa aquele símbolo de status. Confira na loja do metaverso, . Sabendo de antemão que são montagens, a gente identifica. Sem saber, ou demoramos demais ou passamos batido.

O fato é que podemos montar uma vida completamente inventada e estamos mergulhando cada vez mais fundo nessas tecnologias. Isso significa que a garantia das liberdades individuais passa pela mediação dessas plataformas.

Há diversas formas de lidar com o poder que as “Empresas-Estado” têm sobre as pessoas. Na União Europeia, Estados Unidos, América Latina e outras regiões democráticas do mundo francamente ainda patinamos.

Países totalitários já decidiram que empresa nenhuma vai dominar os dados e manipulação psicológica dos cidadãos. Os governos totalitários é que vão.

A China, por exemplo, recentemente limitou o tempo que crianças e jovens podem passar jogando videogame. Houve duas rodadas de imposição de restrições, a segunda maior que a primeira.

E como vão controlar isso? Se pais e mães reclamam o tempo todo de não conseguir controlar o tempo dos filhos nos games, como o governo conseguiria? Consegue porque já tem a liderança mundial em inteligência artificial.

As democracias estão ainda penando para regulamentar diversas empresas que ficaram poderosíssimas por controlar as plataformas em que as pessoas se relacionam. São diversas empresas gigantescas das quais os cidadãos dependem para se relacionar, ter informações, fazer pagamentos e realizar atos da vida civil.

Imagine que um único grupo de pessoas fosse dono de todos esses sistemas e pudesse cruzar os dados. Ele sabe tudo o que você faz da vida e pode decidir, de forma automatizada, impedir que você faça algo ou recompensar você por alguma boa ação.

É o sistema de “score social” que já está em vigência na China. A inserção digital é completa e o controle dos dados também. Pessoas que contestarem publicamente o Partido Comunista Chinês podem gerar consequências para toda a família.

Não são consequências como as que estamos acostumados, mas impedimentos práticos na vida. Alguém com baixo “score social” pode ser impedido de comprar passagens de trem e avião. Se um parente seu criticar o Partido Comunista Chinês, é um risco que você corre.

O “score social” também determina quem estuda nas melhores escolas, tem oportunidade de disputar os melhores empregos e as melhores moradias.

Por outro lado, pessoas que fazem boas ações são recompensadas automaticamente. O sistema domina todas suas interações para a vida cotidiana. Quem cuida dos pais idosos, doa sangue e recicla lixo, por exemplo, tem favorecimento e descontos em serviços.

É uma cultura completamente diferente da nossa, a brasileira. Parece assustador que alguém controle todos os nossos passos e resolva nos boicotar ou recompensar conforme seguimos regras ditadas.

Precisamos saber que hoje isso é possível. Nas democracias ainda patinamos sobre como regulamentar esse poder. Não há uma centralização, há diversas empresas que se comportam de maneiras diferentes. Algumas delas são mais poderosas que governos.

Enquanto quebramos a cabeça para regulamentar, a tecnologia só avança. Estamos cada vez mais inseridos e dependentes desse universo mediado por algoritmos.

Como resolver a questão ainda é incerto. Se demoramos demais para impor regras, podemos ser engolidos por poderes que desconhecemos. Se nos precipitamos na regulamentação, ela pode ser feita à revelia de princípios democráticos.

A questão que resta a cada um de nós é como defender nossas liberdades individuais neste contexto. Culturas autoritárias já resolveram suas regras. Nós ainda não. Uma precipitação na regulamentação pode nos jogar para o campo autoritário. São decisões desafiadoras.

Cada vez mais temos de ter clareza sobre nossos princípios e o que preserva nossa individualidade e saúde mental. A liberdade econômica também é central nessa equação. Sem ela, não é factível manter a saúde mental para garantir liberdades individuais.

Mais uma vez não tenho respostas, só muitas perguntas. É tentador resolver tudo de uma vez, mas a única solução comprovada já existente seria importar o modelo chinês de controle. Quem controlaria?

A tecnologia é sedutora. A possibilidade de uma vida inventada, com menos ônus para grandes emoções e status é uma tentação quase irresistível. Nosso desafio é viver nesse mundo sem abrir mão da liberdade.

E se você pudesse ser julgado por inteligência artificial

Aqui no Brasil as distorções do sistema de Justiça são alvo de reclamações diárias, inclusive dos próprios operadores da Justiça. E se a gente deixasse as máquinas decidirem? Não seria qualquer máquina, seriam essas super sofisticadas, de Inteligência Artificial.

Se você já teve um processo que demorou décadas ou foi vítima de erros de funcionários do Estado, provavelmente a tentação bateu. A máquina seria provavelmente mais rápida, mais imparcial e cometeria menos erros, certo?

Agora vamos ao caso concreto. No final do ano passado, a China anunciou a criação do primeiro Ministério Público de Inteligência Artificial. O aprimoramento do “System 206” tem a habilidade de indiciar pessoas pelos 8 crimes mais comuns na maior procuradoria do país, com índice de acerto de 97%.

É um sistema de Inteligência Artificial comandado pelo Partido Comunista Chinês que pode mandar pessoas para a cadeia por crimes como “provocar problemas”. A tipificação penal inclui delitos como fraude de cartão de crédito, crimes de jogos, direção perigosa e também coisas subjetivas como obstruir deveres das autoridades e dissenso político.

Mais adiante eu vou contar para você que países de ideologias democráticas, como os Estados Unidos e alguns da União Europeia tiveram ideias parecidas e estão aplicando. Sistemas preditivos de delitos são tentadores mesmo para quem já viu o filme Minority Report na virada do milênio.

Agora eu explico quais os princípios de operação do “System 206” e até onde vai a autonomia dele. Desde 2016 os procuradores chineses já têm apoio de inteligência artificial por este sistema. A função dele era verificar a solidez das provas e a periculosidade real dos acusados, mas não podia sugerir penas ou interferir nos processos.

A diferença do sistema desenvolvido na Academia Chinesa de Ciências pelo time do professor Shy Yong é que ele pode efetivamente indiciar pessoas e obter 97% de acerto com as condenações que pede. Até determinado ponto, ele tem autonomia para substituir decisões humanas, embora as decisões finais jamais venham da máquina.

E como é possível “treinar” uma máquina para isso? Basicamente da mesma forma que treinamos os seres humanos, pela experiência. Entre 2015 e 2020, a equipe de cientistas submeteu 17 mil casos diferentes das 8 modalidades mais comuns de crime ao aprendizado das máquinas.

Imagine que um promotor trabalhe em 17 mil casos diferentes de apenas 8 tipos penais dos mais comuns numa mesma localidade. A gente diria que se trata de alguém bem experiente. Mas aí é que vem a comparação da complexidade do pensamento humano com o processamento da Inteligência Artificial.

O primeiro grande desafio era ensinar a Inteligência Artificial a eliminar do seu processo decisório os detalhes que são irrelevantes para o caso. Todo processo tem isso, uma história enorme em que há detalhes importantíssimos para o veredito e outros apenas ilustrativos. Para seres humanos já é desafiador separar o joio do trigo e acabamos tendo surpresas, imagine ensinar uma máquina.

O outro obstáculo era afinar a linguagem. Máquinas e seres humanos lidam com linguagem de maneiras diferentes. Em processos penais, o processamento da Inteligência Artificial tem de levar em conta todas as nuances da linguagem humana, o que é um baita desafio.

Para nós, humanos mortais, parece a descrição de mais um filme de ficção científica. Mas o trabalho foi feito durante 5 anos e publicado em uma revista científica de prestígio com revisão pelos pares. Outros cientistas tiveram acesso aos dados e referendaram a capacidade do sistema para processar criminalmente pessoas.

O grande drama é que o sistema legal é falho quando gerido por humanos. Há falhas que comprometem de maneira desumana vidas e destinos. A Inteligência Artificial poderia corrigir isso? Ou seria mais um passo para que governos totalitários tivessem justificativas morais para suas ações?

O trabalho dos cientistas mostrou que a Promotoria Pública por Inteligência Artificial tem acerto de 97%. Não há medidas exatas dos acertos por promotores humanos na mesma localidade.

Os próprios cientistas admitem que há 3% de erros. Mas não são números, são pessoas que podem perder a liberdade injustamente. A grande questão é quem se responsabiliza nestes casos.

Quando a Inteligência Artificial erra na acusação – e isso vai acontecer – quem é o responsável? O juiz que aceita os argumentos? Os promotores que trabalham no caso? Ou é quem programou o sistema? Não sabemos, só sabemos quem paga o pato: o acusado. Também não sabemos a quem ele poderia recorrer.

Neste caso específico, colocamos atenção sobre quem controla o sistema. O Partido Comunista Chinês já tem, mesmo sem Inteligência Artificial, um altíssimo índice de condenações de divergentes políticos.

Não existe um sistema judiciário independente da lógica política do país, estão interligados. “Aqueles que falam ou agem de maneira considerada inaceitável para o Partido, como dissidentes, religiosos, advogados de direitos e jornalistas cidadãos, são frequentemente acusados ​​de crimes vagamente definidos, como ‘provocar brigas e causar problemas’ ou ‘subversão do poder de Estado’. São invariavelmente condenados em um sistema de justiça com uma taxa de condenação de 99,9 por cento”, pontua Frank Dong, correspondente do Epoch Times.

Então o problema de usar Inteligência Artificial na Justiça está em quem é o dono? Antes fosse. Existe uma desconfiança – não uma certeza – de que governos autoritários podem dominar sistemas de persecução penal administrados por máquinas.

Infelizmente, isso não significa que sistemas democráticos consigam entregar justiça nos sistemas de persecução penal administrados por máquinas. É isso o que se verificou em diversas experiências nos Estados Unidos e Europa.

Diversos departamentos judiciários e de polícia nos Estados Unidos recorreram ao uso de Inteligência Artificial nos últimos anos. Um ensaio provocativo da revista Venture Beat traz a principal questão: máquinas são capazes de entender o mundo da mesma forma que os seres humanos?

O Judiciário dos Estados Unidos descobriu pela experiência que o preconceito existente em cada um de nós afetava a objetividade da inteligência artificial. Isso aconteceu também com sistemas para concessão de crédito bancário e contratação em empresas.

Há grupos sociais que vão analisar estes obstáculos sob o ângulo de conspirações dos opressores. Na verdade, é algo mais simples. A Inteligência Artificial é programada de acordo com as experiências existentes e passadas, sejam elas boas ou ruins.

Nós, humanos, temos uma visão diferente de futuro. Nossos planos não são os de repetir experiências do passado, são de melhorar. E é essa a grande divergência entre os julgamentos humanos e aqueles de Inteligência Artificial, cada um com suas falhas específicas.

Nunca teremos julgamentos perfeitos e jamais teremos uma Inteligência Artificial que entenda regras humanas plenamente ou humanos infalíveis. Há uma grande questão posta diante da defesa da liberdade: somos mais ou menos livres com a decisão das máquinas?

Inteligência Artificial pode ser muito útil para ajudar equipes humanas a filtrar dados e chegar a conclusões mais objetivas. No entanto, a tecnologia não é infalível como gostamos de imaginar, é programada por seres humanos.

Estamos diante de um dilema que não é do futuro, é do presente. Conseguimos distorcer a realidade a favor dos nossos com mais força pelas máquinas ou pela vontade humana? Confesso que não sei.

Analisar essa questão sem preconceitos e com a mente aberta é um dever de todos nós, cidadãos. A tecnologia não tem reversão, só avança. A sede de poder também. Nosso instinto de sobrevivência e os princípios de liberdade são nossas âncoras em tempos de mudanças.